sábado, 19 de setembro de 2020

Tá na cara


Vejam que estudo fofo. Pesquisadores da Universidade de Trento (Itália) deixaram 136 tartaruguinhas expostas a quatro imagens com padrões distintos, sendo que apenas um deles se assemelhava ao de um rosto, com formas que mais ou menos equivaleriam a dois olhos e uma boca. Adivinhem para qual imagem 70% dos bichinhos se dirigiam ou ficavam olhando apaixonadamente? Sim, esse desenho mesmo – o qual, quando removido pelos cientistas, era substituído no coração das tartaruguinhas pelo segundo que mais parecesse uma face. E não é por apego aos pais, como os bebezitos de galinhas, cães e macacos, que apresentam o mesmo comportamento: enquanto esses outros animais costumam ter mamães protetoras, os nenês tartarugas saem dos ovinhos sós e independentes. Na conclusão dos pesquisadores, portanto, filhotes tanto de espécies solitárias quanto das sociais têm uma atração por rostos vinda "de um mecanismo antigo, ancestral à evolução de répteis e mamíferos, que sustenta as respostas exploratórias e potencialmente de aprendizagem" (palavras das autoras Elisabetta Versace, Silvia Damini e Gionata Stancher). 

É fascinante saber que, a despeito até da programação biológica que faz algumas criaturinhas nem terem genitores em que se espelhar, a tendência das espécies mais evoluídas não deixa de ser a do espelhamento; somos todos, por natureza, buscões de uma âncora e uma bússola em outros olhos, em outras expressões e trejeitos. Como se cada animal de inteligência mais sofisticada trouxesse no DNA a informação primária, antediluviana, de que o mapa é o outro. No documento aberto em cada figura alheia, realiza-se a observação preciosa do que deu certo e do que não deu, a colheita das reações às várias experiências, a leitura das coordenadas disseminadas pelos pequenos músculos fofoqueiros que contam de alegrias, fracassos, raivas, paciências, ameaças, afetos. Principalmente filhotes (ainda inaptos para outras leituras) só têm no "posto Ipiranga" de seus maiores a fonte das próprias referências, a anteninha de transmissão dos sinais do mundo; é na tela desses exemplos que vão ver, escancarado, o que eles mesmos são: dons ou decepções, sortes ou trambolhos. O comum é que suas paredes emocionais se ergam escoradas nessa resposta.

Pequenos humanos – é claro que venho me referindo prioritariamente a nossos filhotes, que dúvida – podem não ter o extraordinário treinamento do FBI para avaliar microexpressões faciais, identificar verdades e mentiras que moram em olhares à esquerda ou à direita, em repuxadas de lábio ou coçadinhas de nariz; mas pequenos humanos são profilers intuitivos e competentes em perceber com quantos muxoxos se diz "te acho muito lento para aprender", com quantas reviradas de olhos se faz um "aff, cada medo idiota que você tem", de quantos bufos se compõe um "menino, tenho coisa séria pra resolver, me deixa" – assim como percebem olhares aplaudindo orgulhosos, sorrisos escutando sem deboche e lágrimas brilhando de aprovação. Promessas e discursos têm mais mecanismos de disfarce, porém rostos resvalam sempre, nem que por um nanossegundo, suficiente se o filhotinho em questão conhece aquele idioma de berço. É para as minúcias da face que a natureza, esperta, nos orienta, como se o código genético de milênios e milênios anteriores a nós cochichasse no instinto: olha os olhos, olha a fisionomia, filho; por eles, transborda o ecossistema interno; não há terremoto de dentro que não perturbe minimamente a construção de fora. 

Papais, mamães de crianças atentas (como o são todas, já que não existem as indiferentes aos indícios de serem ou não amadas): providenciem sentir no particular antes de denotá-lo em público. Pequeninos filtram o mundo na imagem dos grandes; a luz que enxergam ou deixam de enxergar é proporcional à que incide em seus adultos preferidos e ricocheteia transfigurada em autoestima, (in)segurança, ternura e explicação.

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