sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A dor na solitária


Não é segredo para ninguém que sou chegada a uns programas de psicopata, principalmente aqueles do Investigação Discovery; nenhuma propensão sádica, espero, mas uma tendência irresistível tanto para histórias quanto para análises psicológicas. Gosto de tentar entender os estranhíssimos mecanismos humanos – mesmo esses –, embora de determinados episódios eu precise sair para tomar a fresca em outros canais e só volte quando a coisa se encaminha para uma conclusão. Um dos episódios "expulsadores", que não consegui encarar integralmente, faz parte da série Vivendo com o inimigo (interessantíssima, por sinal, já que cada caso é narrado por alguém muito próximo ao assassino da vez – o que sempre nos permite acompanhar a "evolução" de um criminoso pelo ponto de vista de quem via os sinais, porém só os entendeu de fato quando já era tristemente tarde). A história dilacerante a que me refiro é contada pelo jovem Corey Breininger, o qual foi vítima de manipulações terríveis pela madrasta doida, até o extremo de, aos dez anos, ter sido praticamente obrigado pela monstra a matar o próprio pai. Não consigo nem quero entrar em mais detalhes; o objetivo não é esse em absoluto. Só sentei aqui para comentar o quanto me impressionou o momento em que Corey, relembrando o assassinato, rompeu em lágrimas, para reprovar-se logo em seguida: "Eu não gosto de chorar". "Por que não?" – devolveu a voz feminina que o entrevistava. Por um segundo, foi inevitável que eu antecipasse uma resposta à moda machista, alguma preocupação com o ato de demonstrar fraqueza etc.; mal contive o choque, portanto, quando a explicação do rapaz me encontrou 100% despreparada: "Porque eu sei que isso me faz sentir melhor, e eu não quero me sentir melhor".

Que esquisita beleza, que compêndio de dor, humildade, lucidez e culpa numa única frase que é uma pérola de imprevisibilidade humana. Poucas vezes ouvi sinceridade tão lancinante, autoanálise tão direta e limpa. Corey sabe ser o responsável direto, mas não o verdadeiro pela morte do pai; sabe que era somente uma criança confusa e apavorada; sabe que foi usado nível hard por uma psicopata nível hardíssimo – e mostra saber que sabe disso tudo. O combão de consciência, porém, não o impede de punir-se, e curiosamente de modo bem consciente: já que não pode ser preso pelo que fez na condição de pobre marionete, enjaula-se na retenção possível, rouba de si mesmo o alívio das lágrimas livres. Evidentemente o choro sai às vezes, em indulto ou banho de sol; mas vigiado, observado, atalhado, sem a provável desolação aberta da tristeza que parece desesperada e não é desespero. O desespero real, similar ao aparentemente sentido por Corey (apenas similar, creio, uma vez que o moço dá todos os indícios de compreender seus sentimentos e abraçar o desejo de seguir em frente), tende a ser calado e seco, mergulhado em buraco catatônico; é o buraco onde se enfiam os que não perdoam o que quer que seja, os que não se perdoam, os que involuntariamente se castigam até por aquilo de que foram vítimas, algemando-se a uma dor perplexa, silenciosa. A dor encerrada na solitária, a que não tem com quem expandir-se e verbalizar-se, a que não fala, não chora, não grita: implode-se. A dor de quem sequer tem forças ou condições de saber que não quer se sentir melhor.

Corey Breininger AFIRMA que não o quer – e, apesar de minha carteirinha de leiga total, acredito poder perceber essa verbalização, essa capacidade de trazer o processo para o setor da escolha, como um bom princípio de cura. Ou desejo acreditar que sim. Por mais que a frase do rapaz seja um alerta tocante e poderoso sobre nossos complicados sistemas, não é ainda mais preocupante quando NÃO somos capazes de emitir essa frase? quando nos condenamos à revelia, sem apelação, sem tribunal nem júri, sem sequer relar os olhos pelos autos? Não é questão de culpar a vítima, ao contrário: é constatar tristemente que ela mesma o faz, talvez numa reação prévia aos julgamentos da sociedade cobrante e apontadora. A dor que não se manifesta como tal não deve, pois, ser mera e desrespeitosamente convocada a reagir, como se a vontade pudesse resolver o que ainda não chegou à jurisdição da vontade. Não se cura com torcida organizada o tumor inoperável. É preciso que um profissional de tratamento e escuta facilite o encaixar das peças – a ação na percepção, a emoção no motor, a dor anônima no nome que ela tem – para que se pegue a visão, para que se acesse o mapa. Antes da costura, a junção; a imagem, antes do bordado. Antes da receita carimbada, a ideia firmada de que há, sim, um brado retumbante amordaçado dentro da mudez que não busca remédio.

Náufragos como Corey têm bússola, escrevem SOS na praia, não sossegam enquanto não constroem com labuta uma jangada. Náufragos da dor que apenas se deita na areia precisam sobretudo ser convencidos de que estão numa ilha.

Nenhum comentário: