quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Como dois e dois são quatro

 200 perguntas para conhecer melhor alguém

Fosse vivo, o querido Ferreira Gullar completaria hoje redondos 90 aninhos. Não, corrijo-me: o querido Ferreira Gullar completa hoje redondos 90 aninhos, porque, se sua presença física nos trocou pelo paraíso dos poetas, nem por isso o mundo deixou de, há quase um século, tê-lo e respirá-lo; uma vez nascido, o artista não morre – só se acrescenta para gerações sucessivas. 

Todos que leram o poeta certamente já foram tocados por uma de suas emanações mais fortes e doces, nos versos de "Dois e dois: quatro": "Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja caro/ e a liberdade, pequena". Eram outros (outros?) tempos quando o poema desceu do lápis, mas o pão voltou a ser caro neste nosso arremedo de política infernal e desastroso – e a liberdade, se despontou em imensidão de novas flores antes impensadas, se voou com imensidão de recursos, infelizmente ainda baqueia e baqueia muito, a ponto de volta e meia encarar caças às bruxas e dossiês. Não é menos verdade, no entanto, que por seu lado a vida continua valendo a pena, agora revista e ampliada com belezas recentes e encantos fresquinhos. 

Como dois e dois são quatro, há horinhas de ser plena, embora o coiso "governe" e sabote a quarentena. Há o esforço dos guerreiros da saúde na arena; ações, vaquinhas, projetos que gente boa coordena; vozes deixando o escanteio e protagonizando a cena; a força universalizada da mulherada chilena. Há bem menos tolerância com quem foge e se aliena, não pesquisa e não protesta, só repete cantilena. Há celulares flagrando o que o direito condena; pra cada caô da polícia, alguém de butuca e antena; povo heroico na quebrada, porreta, da gota serena. 

Como dois e dois são quatro, sei que o mundo ainda engrena: tem mais asas do que armas, mais flori do que envenena. Tem os canais de Veneza, as cores de Cartagena, as cerejeiras de Tóquio, a primavera romena; tem rosa, camélia, amarílis, lótus, gerânio, açucena; tem neve alvejando montanha e mar de azulice obscena. Tem manga, paçoca, sorvete, pavê de biscoito maisena, frevo, forró, batucada, tango, lundu, macarena. Tem ver filme com pipoca, abraçado na morena; tem rir de meme no Face; tem sonhar com a Mega-Sena. Tem perder e, mesmo assim, teimar naquela dezena.

Como dois e dois são quatro, sei que a vida é escalena; mas "um tempo de alegria/ por trás do terror me acena". 

(E tudo chega a bom porto se a alma não é pequena.)

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