domingo, 20 de setembro de 2020

Quem cala ainda sente


Agora uma coisa só aparentemente desalmada, se vossos corações forem sinceros: é quase menos difícil encarar a constância desumana de uma britadeira do que a estridência das crianças que brincam. Das crianças desnocionadas por seus pais, ao menos. Neste exatinho momento em que escrevo, escrever é francamente impossível sem que janelas e cortinas tenham sido devidamente fechadas (o dia é quente) e o abafador de ruídos esteja em posição de guerra na cabeça (trucida o crânio, este coisinho fofo). Sim, aquele abafador de ruídos ao estilo dos usados dentro de clubes de tiro e ao lado das britadeiras. Por quê? porque um serumaninho histérico celebra histericamente sua brincadeira de lavar o carro com o pai, na garagem. Justiça seja feita, não é somente o serumaninho que grita; seu responsavelzão o atiça aos brados bicho-papões, "ameaça-o" de farra e desperta a pior euforia do monstrinho, sem se preocupar em moldá-la ao que seria razoável para um sábado quieto, no qual outras pessoas moram, pensam, trabalham, telefonam, descansam. Filho de desnocionado gritador, desnocionado gritadorzito é. 

Tem absolutamente nada a ver com não gostar de crianças: gosto, quero que aproveitem a meninice com o maior encantamento possível, quero que corram pelas campinas à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis, casimiramente. Minipessoas fazem barulho, sei como é (tanto sei que não quis inventar nenhuma para compartilhar o endereço), e não sou aquela vizinha ranheta que reclama de tudo; muitíssimo ao contrário, não reclamo de nada. Naaadaaaaaa. Cerro os vidros, meto o abafador de quem está prestes a fuzilar alguém sem fuzil e segue o jogo. Mas poxa. Não é preciso, imagino, que um condômino apresente queixa formal para o incômodo se tornar patente: alguns, eu inclusa, só desejam que seu sossego e preguiça não sejam invadidos sequer pela necessidade de resmungar que seu sossego e preguiça estão sendo invadidos; só desejam existir soberanamente na paz, sem a própria amolação de lutar por ela. Esse direito inalienável de manter desnecessária a defesa do óbvio esbarra na outra parte, quando não quer cumprir o pacto tácito do "eu não te chateio, você não me chateia". Com frequência muito maior do que a aceitável, o lado azucrinante recebe o silêncio do azucrinado como satisfação e anuência, encostando-se no cinismo clichê do "quem cala consente" – e esquecendo que o vocabulário do silêncio vai muito além do binário, do sim e do não; silêncio pode sussurrar em nenhumas palavras: "não falo porque tenho medo", "isso me atrapalha MUITO sim, mas eu perderia ainda mais tempo parando para protestar agora", "nem te respeito o suficiente para discutir com você". Há milhares de diálogos prováveis embutidos no que não é dito – perceptíveis, teoricamente, por meio da santa delicadeza que deveria ser prerrogativa das almas humanas; da alguma sensibilidade que nos cabe, em tese; quanto mais não seja, do modelo mais básico de noçômetro que esteja disponível no mercado.

Não urge nenhuma fórmula de Bhaskara para descobrir que se está incomodando alguém, convenhamos. Qualquer indivíduo que não tenha sido criado por lobos é capaz de constatar que talvez haja decibéis de mais para o momento, talvez haja alguém doente no prédio, ou em reunião online, ou mergulhado em livros de Enem, ou simplesmente focado na televisão; talvez haja alguém no vagão do metrô constrangido com as intimidades tornadas de domínio público, ou debruçado nos últimos minutos de estudo antes da prova, ou esperançoso de espremer um cochilo entre dez estações. Claro, não é contra a lei estimular gritinhos agudos de criança (com gritões graves de adulto) numa tarde de sábado, não é contra a lei engatar um papo quase coletivo no metrô; é, porém, bastante pobre nos guiarmos apenas pelo contra ou a favor da letra fria da lei, que existe para o macro mas não aconchega o micro. Empatia não é bicho de simples proibições, é bicho de atentas gentilezas e minúcias – não escritas, não determinadas, não impostas, movidas única e meramente por essa coisa linda, linda que chamamos de consideração, um dos avatares do amor em uniforme de trabalho. 

Habilidade social e bacanice estão nisto, no fazer o sequer pedido, quanto mais o compulsório. Todo o certo que realizamos por encomenda das regras não nos coloca além de nossa obrigação.

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