segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A encher o copo


Sou otimista por natureza talvez, mas creio que ainda mais por sobrevivência e orgulho ficcional. Por sobrevivência, porque me sinto absolutamente incapaz de existir pensando que não tem jeito, e que o pior se encaminha; pra que pitombas nasceríamos às dúzias e ficaríamos nos esbarrando sobre a crosta terrestre, se fadados ao fracasso? Por orgulho ficcional, porque mais ou menos isso aí mesmo: narrativas foram feitas para ter um fim a contento ("se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim", diria Fernando Sabino – e quem sou eu para questionar); me parece impossível simplesmente quedar em posição fetal num cantinho e ficar vendo os créditos subindo sem alguma espécie de arremate, caminho, explicação. Ahn? a história acaba assim sem término, pendurada? Não, não, eu não vim aqui para isso, coleguinhas roteiristas; bora sentar todo mundo já-já-já em torno do buraco narrativo e arrumar essa joça. 

O que me põe concordando com Winston Churchill no ato de declarar: "Eu sou um otimista. Não me parece muito útil ser outra coisa". Ainda não encontrei resumo mais cândido e direto. Sem a menor vocação para a positividade tóxica à moda coach, sem paciência para pollyannices tampouco (por mais que eu adore literariamente os dois Pollyanna), continuo mesmo assim aferrada à posição otimista porque considero todas as alternativas infinitamente piores. Do que adianta não ser otimista, em específico? Para que serve estar convicto de que todas as estruturas irão irremediavelmente desabar, não importa o que façamos? Alguém de fato dorme mais tranquilo ou realizado tendo abraçado a ideia do caos inevitável, da calamidade que espreita e vence, do apocalipse social como profecia? Pode ser, óbvio, que muitos corações durmam pesados e brutos porque se conformaram com o pior, defendendo-se do esforço de acreditar, buscar, decepcionar-se, recompor-se, repetir; pode ser que durmam em coma de sentimento, em letargia fofinha; não dormem, porém, felizes e serenos – já que no pessimismo entreguista, se não há o desconforto do risco, não há também o gozo pessoal do combate bem combatido, da insistência. O otimismo é uma andança dolorosa e viva; o pessimismo é a imobilidade perplexa. A imobilidade que não dói no sentidor, mas o atrofia, priva-o da continuação de si mesmo.

Reitero: não há romantismo pollyânnico no otimismo em que acredito. Está a léguas de ser otimismo-saltitância, otimismo-palminha. Encaixa, sim, naquele que "não é ver o copo meio cheio; é estar constantemente a encher o copo", nas palavras do escritor português Pedro Chagas Freitas (perdoem a metralhadora citatória que isto aqui está me saindo). Trata-se do otimismo de front, de trincheira, de guerrilha, que não sossega num plano só, que aprende, que se adapta, que vai cavando estratégias, que vai bolando criatividades, que não mostra de vez todas as cartas – praticamente um die hard, um catch me if you can. O otimismo que conhece e abre túneis, coloca luz onde não tinha, ataca por onde menos se espera, se esconde de algumas ameaças porque não é bobo, opera dia sim, dia também, no sapatinho, na surdina, na malandragem. Nesse otimismo incansavelmente maroto, que não se abate se o trabalho de uma rodada rendeu um pouco menos que o da anterior, acredito piamente. Esse é cabra forte, cabra teimoso; se dobra a algumas contingências de um lado, do outro já começou a recalcular as coordenadas. Otimismo de avenger saudoso. Otimismo de Peri.

Se não temos nada a perder, o pessimismo é um desperdício. Se temos tudo a perder, o pessimismo não é uma solução. Na compra de um otimismo sustentável e autorrenovável, ganham-se chances fresquinhas de tudo efetivamente dar certo e, de brinde, o voucher de sucesso pré-datado enquanto ainda não deu certo no fim.

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