quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O teste do beijo

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Não é o que vocês estão pensando. Refiro-me à fala tão bonitinha de Fábio Porchat no último Papo de segunda: o apresentador declarou que, ao fazer shows de stand-up, considera os aplausos bastante incômodos, já que abafam o rápido fluxo de piadas e acabam atropelando o timing; o que verdadeiramente costuma ser um termômetro feliz de sucesso é quando um casal se beija na plateia. Por quê? Porque raramente os dois componentes de um casal desejam de fato ir assistir ao show, explica Porchat; em geral um quer, o outro não, e o segundo apenas concorda em acompanhar o primeiro. Porém, no advento de uma piada realmente boa, da risada cúmplice e conjunta, o beijo dos pombinhos indica que o "carregado" está dizendo ao "carregante": que legal, estou me divertindo, obrigado(a) por ter insistido no rolê. Havendo selo beijístico de qualidade para celebrar o momento, o comediante sabe que mandou bem e a audiência está conquistada.

Naturalmente achei fofíssimo e agudíssimo o parâmetro adotado pelo ator – coisa de quem conhece bem demais seu ofício, tem jogo de cintura no olho e intimidade com almas deste mundo. É isto: o melhor indício de êxito em qualquer função é a capacidade de motivar uma comemoração particular. Nem precisa ser a festa óbvia que vem da comédia, do brinquedo, do sorvete, do musical, do parque, da montanha-russa; basta botar um coração festejando a oportunidade, sendo grato pela experiência, inflando o peito com aquela brilhantura de quem saiu melhor da empreitada. De um filme blasterdramático ou de alguma forma perturbador – uma Lista de Schindler, um Dançando no escuro, um Silêncio dos inocentes, um Blade runner –, por exemplo, não se desembarca contentinho; mas, em se tratando de uma joia artística, ela passa indubitavelmente no teste do beijo, dando um pontapezinho na celebração de: que bom que eu vim, que bom que vivi/vivemos essa viagem estética pela condição e a inteligência humana. A questão não é de confete e serpentina, e sim da percepção de que algo em nós evoluiu.

A conversa foi forte, honesta e construtiva, terminando com a convicção do respeito e do apoio mútuos: passa no teste do beijo (ou do abraço, se foi conversa de fim de caso bem-sucedida). A apresentação em grupo foi um arraso, não pela tecnologia de ponta supérflua, mas porque alunos, colegas, clientes ou outros alguéns interagiram, se interessaram, não desviaram os olhos: passa no teste do beijo (ei, eu não disse que precisa ser na boca, disse?). A comida não teve nenhum fogo de artifício, nenhum ingrediente só encontrável à beira dos Alpes suíços ou no paraíso intocado de Medog, porém o tempero estava particularmente alegre e inspirado, chamando papo na mesa e sobremesa: passa no teste do beijo. O jogo foi vencido com brio ou perdido com dignidade, mas de qualquer modo brilhante e lutado: passa no teste do beijo. O livro indicado (e recém-concluído) não foi exatamente o texto mais agradável da vida, e, no entanto, não deixou célula sobre célula, neurônio sobre neurônio, marcando um "antes" e um "depois" nas opiniões formadas sobre tudo: passa no teste do beijo. Se (para o bem) atingiu, comoveu, ensinou, reorientou, redefiniu, surpreendeu, enriqueceu, gerou avanço, gestou mudança – e o fino prazer da mudança –, eis aí aprovadíssimo, nota azulzinha no teste do beijo; como em Divertida mente, acabou de ser concebida uma bolinha policor de memória-base, a ser solenizada na condição de extensão nossa que se inaugura.

O beijo: um cortar amoroso da faixa, ou um soprar de vela. Ou calendário em que abraçamos, vermelhamente, o aniversário dos novos afetos.

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