sábado, 12 de setembro de 2020

Sadaka tashi

 File:İmrahor3.jpg - Wikimedia Commons

Descobri recentemente sobre um antigo costume turco lindinho: a tradição sadaka tashi, relacionada às "Pedras da Caridade". Ainda na época do Império Otomano, espalharam-se diversos monumentos rochosos pela Turquia (dos cerca de 160 originalmente existentes em Istambul, restam uns 30), nos quais os mais ricos podiam deixar uma grana a ser doada para os mais pobres, com o conforto do anonimato; nem os benfeitores faziam pavonice de sua boa ação, nem os que necessitavam das doações se sentiam intimidados ao aceitá-las. Hoje as "Pedras da Caridade" específicas se encontram praticamente em desuso, porém ainda vivem como ideia – tanto que o sacerdote islâmico Abdulsamet Çakir tem aproveitado o espaço de guardar sapatos dos fiéis em sua mesquita (espaço este que anda em "recesso" de suas funções, devido à suspensão provisória das rezas coletivas) como um estoquezinho de alimentos para os necessitados; e, na mesma vibe, inúmeros doadores anônimos já contribuíram com aproximados 3,4 milhões de dólares em um site local que dá uma força nas contas de água e luz da população carente. Não é no Brasil, mas poderia ser – e, afinal, é no mesmo planeta, é na mesma espécie, o que já põe um quentinho no coração. Só essas notícias com cheiro de fornada para nos sustentar erguidos, bastantemente fortes, em era de pandemias e reformas administrativas. 

Claro, o ideal dos ideais era não haver desigualdade alguma, ao menos no ponto de partida; não existir esse disparate chamado fome, não ser possível que alguém não conseguisse pagar contas essenciais – em suma: o ideal era que fosse absurdo e inaceitável exatamente tudo que é absurdo e inaceitável. Aparentemente, no entanto, essa bodega toda continua sendo não só aceitabilíssima como fundamental para alguns. Enquanto trabalhamos com gana para corrigir esses despautérios macro, vamos nos aconchegando nas felicidades micro, nas manifestações mais restritas e até individuais de bondade explícita. A ideia das "Pedras da Caridade" me seduziu desde logo pela antiguidade e, em especial, pelo extremo da delicadeza, uma vez que o mecanismo de generosidade às cegas foi lindamente pensado para linkar os dois lados sem constrangimento de nenhum (principalmente da parte receptora, que não precisava expor suas dificuldades se não o desejasse, nem sentir-se devedora de um determinado poderoso). Admiro com toda a ternura iniciativas assim, de coração para coração, sem requisição de identidades – e felizmente continua a haver fartura de exemplos pelo mundo, irmãos das ações de Çakir e do site turco inspiradas na sadaka tashi: diversas padarias e mercadinhos de bairro que disponibilizam pães e demais produtos, de graça, em balcões externos; bares e restaurantes nos quais os clientes deixam cafés ou refeições pagos para pessoas necessitadas que vierem recorrer aos estabelecimentos; costureiras que produzem máscaras gratuitas contra a covid e as distribuem aos que não as possuem (vi casos de "árvores de máscaras", onde as proteções ficam penduradas como frutos e podem ser "colhidas" por quem passar); varais solidários em que roupas bem conservadas são depositadas por seus antigos donos e se tornam disponíveis para novos, beneficiando principalmente pessoas em situação de rua. Isso apenas para citar exemplos que me ocorrem de imediato – afora as doações que são, mais do que todas, questão de vida ou morte, como a de sangue e a de medula óssea. Um universo de pequenas e grandes entregas humanas para nos lembrar, de tempos em tempos, o que raios estamos fazendo mesmo aqui no planeta.

"Pedras da Caridade" devemos ser todos, potencialmente: fontes de altruísmo que não perguntam para onde correm, não pedem crachá nem carta de apresentação; mãos que têm olhos e ouvidos para saber do entorno, mas não têm boca para dar a saber de si; nascentes que minam e minam e minam cuidados sem minguar nunca, sem escolher planta, sem selecionar raiz, apenas banhando em vida o que estiver seco. Pedras sim, para servir de marco, apoio, referência; jamais imóveis e mortas, porém. Pedras permeáveis ao meio, moldáveis, atentas, ainda assim discretas em suas indulgências. Pedras sólidas e grandes o bastante para se fazer sombra, parede, sem ser tropeço. Contínuas. Confiáveis. Presentes sem opressão e permanentes sem cobrança.

Nossa função de ser gente é essa, direta e gratuita. Tudo que nos afaste de ser o único tipo possível de pedra – que fique pelo meio do caminho.

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