quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Meus olhos estão secos

Estão literalmente secos, por vários motivos que consigo reunir mentalmente: o clima do Rio andou muitos e muitos dias de um secume causticante; em consequência, ventilador em cima quase todo o tempo, esbagaçando ainda mais a umidade dos olhos; na mesma linha, ar-condicionado para dormir e a continuidade do ressecamento; como se não bastasse, horas e horas de computador na cara, sem aquela proteçãozinha contra luz azul que alguns óculos já incluem; e horas raras de sono, um sono demorado e ineficaz de engatar. Os olhos não param de estar insuportavelmente secos, portanto – secos e doloridos, pesados, impacientes, exaustos para enxergamentos de perto, embora míopes. Tento providenciar que lacrimejem; banho-os em soro fisiológico (por falta do coliriozinho que imita a hidratação natural do olho); continuam porém espetantes e (sono)lentos, impróprios para leituras e outras ações de maior densidade. 

Como não é raro que denotação e conotação se abracem, se confirmem, devo dizer que: meus olhos estão secos. Emocional, figurada, politicamente falando, acham-se exaustos até para enxergamentos de longe; não conseguem mais suportar o sangramento de fogo que devora o Pantanal, a Amazônia, a Califórnia, que despedaça casas e biomas, rios e vidas, matas e pessoas e jacarés e onças. Não conseguem mais senão contemplar, embasbacados, aturdidos, o inferno de fumaça, cinzas e sarcasmos que se tornou o meio ambiente com seu "ministério" de horrores. Não conseguem mais reagir à destruição-trator, sem pausa, sem critério, que tudo engole numa catarse de ódio. Não conseguem mais se esvair em comoção e lamento; comovem-se, lamentam, porém não se esvaem – estão momentaneamente calcinados como a terra assassinada para virar pasto; estão temporariamente paralisados como a rota que nasceu para ser rio e não é mais rio. Não vibram, não brilham, mal se abrem sob o clima desértico que se empenha em desertificar qualquer nascente que o toque.

Meus olhos estão petrificados pelas emanações da Medusa com cabeças de Hidra que nos desgoverna; mantêm-se congelados e desacelerados em sua impotência a fim de não se arrebentarem em carradas de fúria. Estão quietos como o bicho que, para proteger-se, hiberna. Estão imóveis porque o estado de choque é demasiado; porque a erupção de toda a ira contra os hipócritas possivelmente aniquilaria mil quilômetros nos arredores; porque, mesmo não sendo (feliz ou infelizmente) olhos de Ciclope, ambicionariam destruir numa piscada os que destroem, e fatalmente passariam a pertencer à lógica da destruição. Meus olhos estão inertes de abismados, como se efetivamente debruçados no abismo – naquele silêncio, naquela imobilidade que antecipa a cólera, a sanha de fera acuada e atiçada. Movem-se lentamente para não provocar a pólvora. Mexem-se molemente para não detonar a bomba.

Meus olhos estão secos – não cegos. Um qualquer descuido meu e eu seria o mesmo fogo que vou eternamente desprezar.

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