terça-feira, 8 de setembro de 2020

O feliz

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"Quando as pessoas são felizes, não reparam se é inverno ou verão." Palavras de Anton Tchekhov, com as quais eu tendo (cautelosamente) a concordar. Compreendo que o autor não falava do clichezão "um amor e uma cabana", a velha ideia e anti-ideia de que um estado de encantamento romântico poderia manter a vida linda e funcional mesmo nas condições mais precárias. Em minha leitura, Tchekhov não se refere a condições precárias, nem a encantamento romântico especificamente; a felicidade da qual trata independe da existência de um parceiro amoroso, e, ao mesmo tempo, inclui todo o pacote básico para o sustento humano, sem privações e sacrifícios físicos. Nesse contexto de plenitude – a felicidade como paz, consciência serena, necessidades supridas, afetos bem aplicados, futurices esperançosas –, "inverno" ou "verão" entram simbolicamente no status de bônus: serão talvez preferências individuais, mas supérfluas, de que as almas já devidamente atendidas abrem mão sem sofrência. 

O sujeito ou sujeita, digamos, conta com uma família amorosa, uma família que lhe providencia todo o suporte emocional, e que não tem a menor obrigação de ser tradiça, ao estilo foto-oficial-de-1900; pode se compor de irmãos incríveis, de pai e avô, de mãe e tia e prima, de madrasta e parentes postiços, de marido ou esposa e parentes postiços, de filhos e seus agregados, de amigos profundamente leais aptos para telefonemas na madrugada – o essencial é que a rede afetiva e apoiadora seja sólida, constante, palpável, real. Além da família abraçante, o cidadão ou cidadã em questão dispõe de moradia totalmente de acordo com sua dignidade humana; nutre-se de maneira completa e eficiente; cuida-se ou é cuidado(a) financeiramente sem que o dinheiro lhe venha de nenhum desconforto, humilhação, martírio; goza de saúde em todas as instâncias, ou lida com um ou outro probleminha sem grande sofrimento; tem tempo para si, os seus e os demais (que um coração feliz é, por lógica, acolhedor e macio). Pronto. Se é de fato saudável em todas as instâncias – o que, admito, o mundo tem procurado dificultar –, a tendência dessa criatura será a felicidade em sua forma estrutural, ainda que haja lágrimas, ainda que haja desgostos pontuais, ainda que haja incompletudes. Incompletudes haverá: lei da natureza. Porém o feliz sabe discernir, inconscientemente que seja, o aborrecimento da ameaça, a vontade da falta, o frio ou calor que chateia do frio ou calor que ataca.

O feliz adora a primavera, o verão, o inverno como agrado e benefício, não como condição. O feliz tem predileções sem atrelar-se a elas; ama sem depender e sem desesperar-se. O feliz normalmente já está mobiliado por dentro de todos os quesitos para seu conforto mínimo, e o que mais vier é complemento alegre, luxozinho, decoração. O feliz adquire, como consequência espontânea, uma segurança que o tranquiliza: é valente e seguro para adaptar-se, é valente e seguro para não competir. Como outra consequência, o feliz não se mede pela régua dos infelizes nem se torna agressivo para defender sua "honra", por sabê-la isenta da necessidade de ser defendida; normalmente é o bem-estar de outrem que faz o feliz mais incisivo e aguerrido. Mesmo assim, por saber que leva em si o que ninguém tem autoridade ou jurisdição para arrancar, o feliz dispensa a violência até o último segundo; ela, sabemos, é estratégia dos perdidos, desatendidos e autodesorganizados, que põem no afã de destruir o desejo de destruir-se. O feliz tem uma confiança orgânica no que é (ou pode ser) bom e sólido. O feliz constrói.

Quantos felizes você conhece, por mais que a consciência do mundo eventualmente os entristeça? Espero que não poucos. Esses espécimes circulam por aí fazendo questão de inocular, em grupos cada vez maiores, seu caronavírus de livre expansão, para seguirem insistentemente felizes carregando o maior número possível de contagiados na garupa.

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