quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Gerança


Às vezes sai tudo tão atabalhoadamente arrumadinho que parece de propósito. Lá fui comentar no texto do querido amigo Tarlei Martins, que tratava de "defeitos" não exatamente defeituosos; a incerta altura de meu microtrecho, digitei ou quis digitar a palavra herança – no que o dedo, desconjuntado, esbarrou na tecla vizinha da letra muda e fez sair gerança. Corrigi, óbvio, porém não pude deixar de sorrir à ironia poética e abraçá-la: e não é que esse erro virou mesmo "contribuição milionária" (milionária é bondade financeira, mas rende uns trocadinhos, vai), conforme pregou Oswald e lembrou meu amigo no texto comentado? Gerança, vejam só. Um segundo de descuido e o teclado faz justiça linguística com minhas próprias mãos.

Porque – não sei se concordam – a versão equívoca do termo que o léxico registra, e que eu pretendia registrar, me parece bastante (ou mais) acertada. Herança é coisa que soa empacotada e pronta; chega fechada, rígida, inteiriça numa embalagem com fitinha, como uma caixinha de música da qual não se pode mudar a melodia, como uma empresa que tem determinado conceito e tradição a zelar, como um vestido de noiva que vai passando de mulher para mulher (Mariiiisaaaa!) sem que filha, neta, bisneta deem um cortezinho sequer no modelo de 1926. Gerança, diferentemente, se promete móvel feito seu nome: é recebida de um jeito sim, mas nem por isso para de ser constantemente gerada. Uma caixinha de música legada em gerança, por exemplo, pode manter a estrutura e a bailarina, tendo modificada sua alma sonora que não seja mais representativa de bons tempos, ou vice-versa (tive em casa um ótimo vice-versa: a boneca japonesa que girava no pedestal cantante – presente dado à minha mãe por seus alunos ou colegas – viu sua estrutura de tecido amarelar e deteriorar-se, e foi devidamente trocada por japinhas de madeira que mantiveram o espírito oriental da peça sem que a melodia precisasse ficar escrava do mofo). Uma empresa que sempre foi assim não tem a menor necessidade de continuar sendo exatamente assim, em especial se assim o bem-estar coletivo não estiver representado à altura; que mude com urgência, que as gerações herdeiras gerem consciência, evolução, inclusão, respeito, repensamento, sustentabilidade. Um vestido de noiva, só porque relíquia e elo familiar, nem por isso carece fazer refém uma casandinha que, coitada, já está se vendo no altar como um fantasma dos casamentos passados, celebrando o enlace no salão dourado do hotel Overlook. Pra que começar família com um trauma fashion? customiza, gente, customiza. Bota ou tira manga, tinge a saia, mete anágua, borda florzinha, cobre de renda, baixa o decote: gera novas, personalizadas memórias sobre a essência amorosa, a essência grupal; caminha um caminho próprio, reconstruído e fresco, que não minta à velha história nem à verdade recente.

Por sinal, reitero: o objetivo não é eliminar a velha história (ainda que, em alguns casos, sua presença seja só o totem do que não deve repetir-se). Sou megafã da restauração fiel, até da preservação de ruínas irrestauradas, em sua beleza bruta de ruínas. Mas a restauração fiel não deixa de ser restauração, justamente com a meta da continuidade por novas estradas; a obra herdada e restaurada é gerada mais uma vez para novos olhos, novos estudos, novas interpretações. Mesmo as ruínas que se mantêm aparentemente intocadas – por escolha, não por descaso – demandam, na realidade, uma intervenção sutil, constante, delicada, atenta dos herdeiros para que o tempo e seus agentes não devorem o que é perecível. A sermos sinceros, não existe herança bem administrada que não seja também gerança, esse nome incidental de alma muito mais verbal e gerúndia (feito dança, andança, comilança), muito mais ativa e zelosa. Heranças que não são ininterruptamente vigiadas, recriadas, essas sim caem na desgraça do tempo faminto, cúmplice da posse doentia e indiferente na mesma proporção. O bom herdeiro é grato e grávido: acolhe, semeia, aduba, gesta, multiplica.

Do que recebemos de nocivo, nossa função é cortar o fio. Do que recebemos de florente, nossa missão é manter o cio.

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