sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Canção do exílio


Hoje é o Dia dos Símbolos Nacionais: bandeira, hino, brasão e selo. E eu sinceramente gostaria de ter motivos para manifestar alegria empolgada na celebração de nossos símbolos. Embora considere no mínimo irritantes e cafonas os ufanismos patrióticos (facííííílimos de resvalar para o monstro do nacionalismo fascista), e embora tenda muito mais para a utopia de uma irmandade universal, sei que é saudável haver algum festejo de características localizadas, de particularidades, de idiossincrasias; vá lá. Acontece que o Brasil é um ser diferenciado no planeta, e se comemora muito melhormente no âmbito regional – com os carnavais, os heróis, as danças, as revoluções, os termos, as comidas de cada partezinha – do que no geral; no geral, no oficial, a autenticidade se esvai e fica o Brasil-pra-inglês-ver, com sua bandeira de cores trazidas pela nobreza importada (cores que significativamente excluem a do próprio nome do país, aliás), sua bandeira de lema sem calor, sua bandeira estampada com o céu de uma república ainda elitista e que veio com 67 anos de atraso (tá, o que não deixa de ser uma tradição nacional). O Brasil sabe ser gigante nas partes, não no todo; nos rodapés, não no texto. É belo, é forte, impávido colosso, mas não do jeito que o hino canta, projetando em nós uma cara largamente erudita, europeizada, com raios fúlgidos de uma liberdade que nunca veio – e sim na engenhosidade diária, na resistência em chão de barro, na sobrevivência, na resiliência. Palácios e gabinetes que carimbam símbolos do Brasil são os mesmos que o esmagam.

Não bastasse a pouca conexão real do Brasil carimbado com o vivido, ainda vêm os Comensais da Morte que apoiam o presente "governo" e sequestram definitivamente os símbolos nacionais para um whole new level de rejeitabilidade. Nas CNTP, afinal, apesar de toda a construção historicamente questionável da bandeira, das cores etc., a gente acaba garrando afeto, se emocionando ao ver o verde-louro da flâmula tremular no solo de outros países, ou ao ouvir o belíssimo ouviram-do-Ipiranga – que, acredito, só tem a Marselhesa como rival de melodia – abrir uma formatura ou fechar uma competição olímpica. Amamos criticamente nossos elementos representativos, mas amamos; nem que seja por hábito, educação escolar ou pelo sentimento quase compulsório de um parentesco. Isso nas CNTP, quando se vive num país problemático sim, porém viável, plausível, tangível, dentro de alguma escala de normalidade. Só que nosso paradeiro atual fica fora de QUALQUER escala de normalidade. A insanidade e a autodestruição assumiram o (des)controle; os zumbis ensandecidos que gritam não querer vacina, e sim cloroquina, desfilam por aí enrolados no auriverde pendão da terra e de vez em quando cantam as margens plácidas, enquanto distribuem sopapos e vociferam delírios nada plácidos. A própria camiseta canarinho, que não é símbolo nacional mas é como se fosse, foi moralmente arrancada de qualquer torcedor de bom senso: virou figurino coxinha primeiro, rebaixou-se a uniforme bolsomínion depois, o que torna inviável – talvez para sempre – que alguma criatura não identificada com o pensamento fascista volte a vesti-la. 

Ou seja: estamos mais órfãos do que nunca de ícones oficiais e extraoficiais da terra natal, já que o verde, o amarelo e suas várias manifestações ditas patrióticas, aprisionados pela seita maluca num relacionamento abusivo, começaram a nos causar repulsa. Eu e amigos diversos simplesmente nos recusamos a usar, postar, portar qualquer objeto, qualquer imagem, qualquer item que vagamente possa levar alguém a nos confundir com a zumbilândia – e isso lamentavelmente significa que somos exilados de bandeira dentro do próprio território nacional. Apátridas morais. Fugitivos que continuam morando na casa. Habitamos um paradoxo continental no qual os autodenominados patriotas envergam com ostentação os signos tradicionais de Brasil, mas tudo fazem para que ele perca o máximo possível de riqueza e soberania, e os que choram sangue por todas as perdas e mortes brasileiras são os que evitam os mesmos signos. Algo como um Supercine macabro no qual o proprietário legal do imóvel anda para cima e para baixo com uma camisa "I love my family", porém dá machadadas a torto e a direito em todos os cantos da propriedade, quebra os móveis, taca fogo com quem estiver dentro, esgota a água do reservatório, bate nos filhos, tortura-os, humilha-os, larga-os com fome; ao mesmo tempo, o cônjuge desse mentecapto morre de vergonha de envergar uma camisa igual, justamente por ligá-la à criatura doida, mas se põe a fazer, em desespero, tudo que está em suas mãos para impedir o aniquilamento da casa e dos inocentes – e é só por eles que não larga essa loucura e vai viver aos pés das montanhas Velliangiri praticando yoga. Soa bem Stephen King? Mas nem se ele, Kafka, Lovecraft e Poe sentassem para um brainstorm num bar ia sair uma encrenca do tamanho da que andamos frequentando. Os dois últimos anos de Brasil fazem o inverno no hotel Overlook parecer um toboágua no cruzeiro da Disney. 

E, do jeito que anda a coisa, logo vai ter nem palmeira ou ave que aqui gorjeie pra fingir que ainda é lar.

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