domingo, 4 de outubro de 2020

Monstros exemplares


Vou tentar resumir tão bem quanto possível a matéria interessantíssima que linko aqui. Basicamente diz que: de modo geral, o mundo sempre olhou com aprovação as pessoas de grande autocontrole, que tendem a praticar mais exercícios, comer mais saudável, evitar usar drogas, ser melhores alunos e funcionários, praticar menos crimes, essa lindeza toda. Lá pelos anos 2010, entretanto, o pesquisador Liad Uziel (da universidade israelense Bar-llan) se pôs a testar a hipótese de que o autocontrole é simplesmente um meio utilizado para alcançar bons ou maus fins, e procedeu a um experimento – o "jogo do ditador" – em que o participante recebe uma grana e pode, se desejar, compartilhá-la com outra pessoa. Segundo Uziel, normalmente os "jogadores" liberam pelo menos um terço da quantia para o coleguinha, porque é socialmente fofo dividir; mas olhem só que significativo: os mais autocontrolados eram dadivosos apenas se achassem que alguém iria julgá-los mal no caso de serem egoístas; se tivessem a certeza de que ninguém iria saber, eram muito mais sovinas do que os poucontrolados e embolsavam praticamente tudo. Feio, feio, feio.

Outra pesquisa que não pegou naaada bem para a galera disciplinada e contida: na universidade australiana de Nova Gales do Sul, o psicólogo Thomas Denson chamou um povo para (ARGH) colocar insetos num moedor de café, dizendo que "o objetivo era compreender melhor certas 'interações entre humanos e animais'". Os voluntários não sabiam que a versão miniatura dos Jogos mortais era, na verdade, construída por um Jigsaw do bem, e que os bichinhos conseguiam escapar antes de serem massacrados; só o que ficou de assustador foi o ruído que o troço fazia enquanto os insetos eram supostamente moídos. Pois mesmo com esse barulhinho do inferno os participantes autocontrolados mandaram bem no concurso para psicopata, obedeceram com preocupante mansidão aos cientistas e se mostraram ótimos exterminadores em potencial. Bem parecidamente com os integrantes de um jogo experimental realizado há alguns anos na França – um falso episódio-piloto de um programa que se chamaria La zone xtrême –, e baseado nos experimentos de Stanley Milgram na década de 1960 (em que se testou o quanto uma pessoa seria capaz de aplicar choques elétricos em outra, caso a "ciência" pedisse). No jogo francês, foi dito aos participantes que eles formariam pares, sendo um o "interrogador" e o outro, o "concorrente"; o primeiro deveria dar um choque no segundo a cada resposta errada, e ir aumentando progressivamente a voltagem – até chegar a mais que o dobro da que existe numa tomada europeia. E não deu outra: mesmo sem nenhum prêmio prometido para a dupla "vencedora", tome choque e choque e choque e choque; nem gritos (forjados) de dor vindos da outra sala impediram a crueldade, principalmente dos mais disciplinados e menos impulsivos. Laurent Bègue, psicólogo que analisou a desgraceira, mandou a real: "Pessoas acostumadas a serem organizadas e dóceis, com boa integração social, têm mais dificuldade em desobedecer". Ouch.

Ouch, sim, mas sinceramente: nenhuma surpresa. A equipe de Bègue, eu e qualquer outra criatura que tenha lido até aqui automaticamente fizemos a relação com a "banalidade do mal" de Hannah Arendt – verdade ou não? Impossível negar o que tantos estudos corroboram: indivíduos que se atam e se atêm apaixonadamente ao rigor das normas tendem que é uma beleza a usar essas mesmas normas como pretexto para as maiores perversidades. Os "certinhos" que temem dar um pio em protesto, que não discutem uma vírgula com o chefe ou professor, que viram para o outro lado porque não é problema seu, ele deve ter merecido, que deduram o colega sem grandes questionamentos, que "não criam problemas", que se ajoelham ante as regras pelo fato de serem regras, que não elaboram crítica autônoma, que agem com a irrepreensível brutalidade de um Javert – todos os conhecem; na Bíblia, aliás, eram aqueles fariseus severíssimos no seguimento da lei, tão severos que esqueciam constantemente o detalhe de ela ter sido criada para o homem e não o contrário, conforme Jesus bem apontou. Os "certinhos" se escandalizavam com o jovem nazareno rebelde que ousava pôr a caridade acima das conveniências, curava gente no dia "errado", andava com pessoas de má fama e ligava ZÍROU para as opiniões de superfície. Os descendentes morais desses "certinhos" não incomumente usaram sobre o peito, ao longo dos séculos, a mesma cruz em que teriam pendurado o jovem nazareno; não raramente se tornaram soldados-modelo que apenas obedeciam às ordens e atiravam sem hesitar na cabeça de humanos parecidos com o jovem nazareno. Como é confortável ser um monstro quando se tem de ser – quando foi ele que mandou!

Não é que todos os "pilares da sociedade" vão se tornar serial killers na primeira brecha, óbvio, mas estudos como os citados dão um quentinho no peito ao ajudar na justa valorização dos que CRIAM problemas para um sistema doente, dos que não se conformam em abaixar a orelha se SABEM que é um burro que fala, dos que não se encaixam em moldes escabrosos de hipocrisia, dos que portam o pensamento crítico como arma e não têm medo de usá-la. É evidente que, pela mesma lógica que impede os pilares de serem sempre canalhas, os caóticos e outsiders também não são sempre santos; conta bastantíssimo a seu favor, porém, a muito maior flexibilidade em considerar o lado do outro, a beeeem maior disponibilidade para não endeusar a própria reputação, o muito menor apego a simpatias e julgamentos sociais dos quais já nada esperam. Entre um autocontrolado que se alimenta da consideração alheia e um poucontrolado brigão e questionador, sei lá, mas creio que meu coração preferiria ficar no time daquele que estivesse menos inclinado a parar seus batimentos. 

(Na maioria das vezes, coincide com quem tem menos a perder se deixar de apertar um botão.)

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