segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Síndrome de Bela Adormecida


Cês lembram um comercial de (não sei mais do que era) em que a senhorinha chegava animadíssima, trazendo um pacote?, e tentava uma comunicação entusiasmada com o senhorzinho seu marido:

– Adolfo! Adivinha o que eu comprei! Um aparelho de som!!

– Heeeeein??...

– Som! Vitrooooola!

– Heeeeeeein??...

– AQUELE aparelho de som que a gente está juntando dinheiro desde o nosso casamento! Comprei!!

– Heeeeeeeeeeeeein??...

Se o comercial em questão já deve estar em suas bodas de prata, o casal protagonista já passara facinhamente das de ouro quando a esposa de Adolfo enfim conseguiu levar a vitroooola. Eu adorava a campanha, ria e ria me-dobrantemente e, como se vê, memorizei para a vida o "diálogo" mais hilário da publicidade brasileira (se é que as palavras que ressoam cá dentro ainda correspondem ao texto original). Mas, apesar das gargalhadas robustas que dávamos do contexto nonsense, da velhinha eufórica com uma compra que não combinava exatamente com a acuidade auditiva do marido, a coisa era triste, era até filosófica; o sonho, afinal, viera tarde demais. Ou acredito haver uma leitura ainda mais desoladora: no agarramento com o sonho de sempre, a adorável senhorinha não soubera adaptá-lo a novos formatos, não soubera mudá-lo ao mudarem as circunstâncias – talvez sequer tenha percebido com inteira consciência que as circunstâncias haviam mudado. 

Existem desses, e como: os encapsuladores da realidade em saquinhos leváveis ao freezer e a qualquer momento descongeláveis com o mesmo sabor, cheiro, textura; como se o portador e futuro realizador daquele desejo cristalizado entrasse igualmente no congelador e ali se mantivesse, tão isento quanto possível das erosões e influências do tempo, tão magicamente preservado de corrupções quanto sua suposta vontade inalterável. É uma ideia simpática como o são as ideias românticas, essa síndrome de Bela Adormecida que permanece encantada e sólida até que um beijo de ocasião feliz a libere para viver seus finalmentes; no entanto, still ideia – apenas ideia. Na nhanha, no aquém dos contos de fada, ninguém congela não, nem jurando forte: corpos oscilam nos fazeres e nos quereres, formas decadentes se transformam em Mumm-Rás, Mumm-Rás se transformam em formas decadentes, dificuldades ligam e desligam. Cabe apegar-se, dos 5 aos 87 anos, ao mesmíssimo sonho de virar primeira bailarina, medalhista de ouro, ganhador do Oscar de melhor ator, mesmo tendo quebrado 53 vezes o braço ou a perna e jamais ter interpretado nem noivo de quermesse? Cabe empenhar a poupança desejística de uma existência todinha naquela aspiração que já caducou de validade, naquele investimento que suas ambições atuais nem mais reconhecem ou escutam?

Cabe, somente, se somente tempo houver passado – só a cronologia oficial, a de fora, a dos outros, a menos crucial. Se por dentro o talento, a motivação, a ânsia, os instrumentos físicos básicos estiverem inalterados, ainda temos um sorridente quem-sabe. Mas normalmente não estão. Normalmente, todo o pacote inscrito no correr dos anos (leituras, encontros, estudos, viagens, insights, experiências) agita com força as metas antigas, aperta frequentemente nosso F5, e não há por que nos sentirmos em falta se escalar o Everest ou publicar um livro de culinária saíram por completo do radar. Não é que tenhamos amarelado, não é que tenhamos desistido e, em consequência, superalimentemos uma frustração gorda; não, os objetivos candidamente se atualizaram, prioridades nasceram, nos demos conta de que relevante mesmo é sentar com família e Netflix comendo pipoca, ou aprender outra língua, ou publicar um livro sim mas que nadíssima tem de culinária, o negócio é poema com fotografia. E tudo bem, não há autotraição no amadurecimento honesto – ao contrário: tende a ser muito mais insalubre recusar-se a mexer no armário de velhas impressões, muito mais arriscado submeter-se ao que quer que nasça ali dentro de roedor e corrosivo. Existe uma alegria imensa em arejar pensamentos de quando em quando, ainda que seja para repô-los nas gavetas após sujeitá-los ao sol. 

Mais de duas décadas depois, continuo na torcida por Adolfo e sua abstrata esposa; que tenham, por exemplo, cambiado a vitroooola em dois passaportes e duas passagens, que tenham se jogado numa aventura realmente conjunta. Não faltam jeitos F5 style de conhecer todas as bandas.

Nenhum comentário: