quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Unboxing


Não sei quem foi e quando, nem mesmo se foi caso de gente conhecida ou lida, mas me recordo de alguém, certa vez, descrevendo uma entrevista de emprego na qual atiraram à queima-roupa uma questão inusitada: me dê cinco usos diferentes para uma caneta (nenhum relacionado à escrita, claro). Me parece que a pessoa da história mencionou o objeto como um potencial prendedor de cabelo – e mais não lembro; lembro, porém, que eu mesma fiquei matutando no assunto, e dali a pouco já escalava a caneta para os papéis de minimastro de bandeira (ou mastro de minibandeira?), tutor de planta, zarabatana, hashi, suporte para anéis, pendurador de chaves. É óbvio que uma coisa é remoer o desafio sem prazo de escuta, cabeça livre e fria, e outra é pensar ligeira e inventivamente diante de olhos avaliadores que podem vir a garantir seu salário; de qualquer forma, achei a proposta interessantíssima, por estimular no candidato a sagrada criatividade que é um dos motorezinhos empurradores do mundo (vamos combinar de não catucar muito a fundo, aqui, o fato de as empresas desejarem multifuncionários adaptáveis a tudo e "vestidores da camisa" crônicos, ou seja: gente que se vira pra fazer de algum jeito a sua função e a de dois ou três outros. Vamos, pelo instantezinho de um post, focar só no universo lindo e lúdico da criatividade como evolução, porque estou precisando dar um tempo na realidade crua, peloamor; coração fortemente exausto). Acredito, aliás, ser das características com maior grau exigido de estimulabilidade – juntamente com a generosidade e a empatia – desde que a criatura brota na Terra. Tenho visto, com tristeza, alunos de criatividade nitidamente tolhida e medrosa, alunos que não ousam um passo para além do lugar-comum em narrativas e títulos, como se a imaginação tivesse brincado insuficientemente para criar flexibilidades, alternativas, repertórios. 

Os meios básicos de turbinagem mental todo mundo sabe: leitura, leitura, leitura, joguinhos de estratégia, brinquedos de montar, leitura, bons filmes, bons programas de TV, teatro, música, leitura, contação de histórias, poemas em voz alta, massinha, pintura, leitura, revistas de colorir, passeios sem objetivos prévios, origami, recorte & colagem, leitura & leitura. Etcétera. Eu sei, nem todos têm acesso muito fácil a vários desses elementos, disponíveis para uma quantidade de pessoas longíssima do ideal. Alguns (como o livro) são insubstituíveis. Ainda assim, se os pais/cuidadores tiveram a oportunidade de ver sua própria inventividade encorajada, seu trabalho de encorajadores conta com recursos múltiplos: convocar os pequenos a imaginar nomes diferentes para as coisas e animais; pedir que respondam a perguntas cantando ou rimando; sugerir que "descubram" figuras humanas nos nós da madeira, nos traços do azulejo, na pedra da bancada – e criem para elas uma identidade e uma vida. Questionar as crianças, à moda lá do entrevistador, sobre outras funções para um pregador, um rolo de papel higiênico vazio, uma caixa de leite, uma garrafa plástica. Propor missões imaginárias para acordar o MacGyver que mora em cada humaninho (você está preso num castelo; para fugir, só tem três folhas de árvore, um prendedor de cabelo, um boné e uma escova de dentes; como você faz?). Pousar objetos sortidos sobre o papel e mandar que as criaturinhas desenhem em volta (olhem só, neste link, que inspirações maneiríssimas de um artista francês). Improvisar cabaninha na sala com mesa e lençol. Projetar sombras de mãos na parede. Organizar uma "caça ao tesouro" pela casa. Tudo isso, e mais outros tudos, a custo baixo ou zero – sem gastos significativos além de tempo e esforço dos pais. O problema é que o tempo e a possibilidade de investir esforço não raro acabam sendo outros luxos, quando carência e recessão nos esbofeteiam.

Pronto, não tem jeito, lá vou eu para a realidade crua, aquela em que o sistema vigente ODEIA estímulos de mais à criatividade de classes mais pobres que a média: circulando, circulando, vamos acabar com essa palhaçada de qualidade de vida e brincadeiras com os filhos, que precisamos deles conformados, obedientes, sem recursos nem perspectivas. Nada mais ameaçador, para a lógica da exclusão, do que jovens das camadas mais humildes recebendo esclarecimento, impulso, apetite por abrir as próprias portas e não as alheias; começando por plantar ideias e tomar gosto por seu alastramento; e se chegando, se chegando para dentro do cercadinho VIP cuidadosamente reservado para a galera do berço esplêndido. Além de cruel, entretanto, essa concentração das chances de crescimento no interior das oligarquias é de uma estupidez, de uma idiotice ímpar (como tendem a ser todas as coisas marcadas pela crueldade). Houvesse uma real celebração da capacidade e da inteligência, ganhariam todos; mais rápido as vacinas seriam criadas, mais virtuosi despontariam no violino, mais atores, diretores, fotógrafos e estilistas geniais flutuariam pelo tapete vermelho, mais chefs nos conquistariam pela boca, mais engenheiros e paisagistas desenvolveriam projetos mais sustentáveis, mais professores brilhantes alimentariam mais talentos – e o mundo feito para todos deixaria de ser um imenso desperdício de tantos. Pela sordidez do egoísmo imediatista que bem conhecemos, soa desinteressante esse gráfico com vagas para todos os ápices, todos os auges; MAIS um motivo para investir violentamente no capital criativo dos jovens cérebros: divertir-se irritando o sistema. Ninguém ignora que quanto mais uma teoria perversa guincha e estrebucha, mais o final da novela se torna prazeroso.

Combater políticas ricas em estímulos culturais para mentes moças da periferia é, em última instância, promover uma indústria da seca, tentando infertilizar terras para que se dobrem a qualquer esmola. Sigamos, ao contrário, abraçando gente que se desdobra e triplica no ato de aproveitar cada cantinho de leitura, cada roda de conversa, cada apresentação de teatro popular para plantar semente braba, semente firme, robusta. 

Essa gente que dá nó em pingo d'água.

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