domingo, 25 de outubro de 2020

Ternarium


Temos níver dançante: 195 anos de Johann Strauss II, o Rei da Valsa, pai do Danúbio azul. Vamos combinar que Danúbio azul é a valsa mais valsa de todas as valsas, e se inclui naquela categoria de obras "quem fez isso não precisava ter feito mais nada na vida" – level: nem Kubrick resistiu. Segundo dizem, uma vez a esposa de Strauss foi pedir autógrafo a Brahms (ser tiete nessa época era outro nível), e o compositor, que costumava nesses casos escrever um trechinho de sua própria música e depois assinar, registrou no papel um pedacito do Danúbio azul e cravou embaixo: "Infelizmente, NÃO [composto] por Johannes Brahms". Uma melodia dessas, bicho.

Amante do século XIX que sempre fui (amante, não candidata a residente), tenho a valsa na conta em que os românticos a tinham: dança quente e sensual daqueles tempos, de gerar maior intimidade no estreitamento dos corpos, de girar pelo salão com os cabelos mais desfeitos e as bochechas mais rosadas – um esparrame de dopamina. Já não fosse bastante essa fama para minha admiração sincera, o ritmo ainda fez nascer versos fabulosos das mãos de meu poeta mais amado, meu Casimiro de Abreu; um poema inteiro memoravelmente compassado pelo um-dois-três, um-dois-três dos bailes vienenses: "Tu, ontem,/ Na dança/ Que cansa,/ Voavas/ Co'as faces/ Em rosas/ Formosas/ De vivo,/ Lascivo/ Carmim;/ Na valsa/ Tão falsa,/ Corrias,/ Fugias,/ Ardente,/ Contente,/ Tranquila,/ Serena,/ Sem pena/ De mim!" E por aí vai, sincopada e irresistivelmente, como se o eu lírico nos passasse a mão pela cintura e nos rodasse, rodasse, rodasse numa inflamada odisseia por aquele espaço.

É dia, portanto, de lembrança apaixonada e de homenagem a tudo quanto há de romântico – mas romântico raiz, sem babaquice de cartão de papelaria, sem mensagens torturantes de telegramas animados, sem gemido de cantor sofrente: romântico-Viena, romântico-Fantine, com altos pontos em escala Werther ou Peri ou Byron. Troço hardcore mesmo. Tipo: florada de cerejeira (ou nossa versão nacional, o ipê). Lareira em casa de montanha. Azulejo português. Vinho tinto. Vestido de noiva rendado. Qualquer coisa rendada. Qualquer paisagem do Monet. Leque. Lua. Luar. Miosótis. Edelweiss. Relicário. Diário. Bolhinha de sabão. Borboleta. Buganvília. Janelinhas azuis (ou verdes) – floridas. Madeleine. Biscoito amanteigado. Árvores vestidas de outono. Árvores vestidas de Natal. Rouxinol. Uirapuru.

Lendas indígenas sobre a origem de tudo. Cabeças reclinadas em outros ombros. Estampas de florzita miudita. Boinas, pulôveres, xales, boleros, echarpes, mantilhas. Sáris indianos. Quimonos japoneses. Lanternas japonesas. Saias rodadas. Tule, filó, véu, voal. Violino. Coisinhas de artesanato. Livros de sebo. Velhas dedicatórias. Fotos em sépia. Cordões de lampadinha. Campos de lavanda. Casas de pedra com hera entranhada e subidora. Cafés com decoração de madeira. Brinquedos de madeira. Castelos medievais. Miniaturas. Carruagens. Faróis. Hortênsias. Origami. Beija-flores. Gôndolas. Bússolas. Amélie Poulain. Capelinhas de beira de estrada. Caixas forradas de tecido. Guarda-chuva dividido. Colchas americanas. Enfeites de feltro. Chocolate quente. Orvalho. Madrepérola. Margarida. Gente que diz que sim e é sim, gente que promete fazer e faz. Gente que nem diz, nem promete, mas é sim: coração íntegro, sem ranhura. Gente que paira com o zelo e não pesa com a presença. 

Tudo tão bom e tão lindo que se quer doloridamente guardar em conserva, de tanto que ameaça se evolar num sopro: um, dois, três.

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