quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Qual é a senha?


Admiro a coragem de mamães e papais que se dedicam, amorosos, à tarefa de botar gente legal no mundo, embora saibam que precisarão viver sempre corda-bambos no dilema: é fundamental estimular as crianças a serem empáticas, sociáveis, generosas, de coração macio e imune a preconceito; mas é igualmente fundamental criá-las de olhos tão abertos quanto o coração, desconfiadas na justa medida, prudentes, sabedoras de que muitas pessoas aparentemente boas e amigas podem não ser lá muito amigas e boas – e eu peno com um embate imaginário entre essas necessidades poderosíssimas. Como administrar doçura sem colher porções indevidas de vulnerabilidade, como proteger plenamente sem gerar cinismo? Por esses e outros dramas é que aplaudo os esforços aqui de fora, porém não aguentaria o tranco; viveria atormentada na incerteza das técnicas de irrigar e adubar um filharal.

Felizmente tem gente que manda benzaço no cultivo, como os pais de uma garotinha de Phoenix (Arizona, EUA) cujo nome nunca foi divulgado e cuja maturidade de decisão, no entanto, tem de holofotar feito um farol na cara de muito marmanjo metido a esperto. Em 2018, a menina em questão – 11 anos na época – andava pelo parque com uma amiga quando um desconhecido se aproximou numa van branca, disse que o irmão da pequena tinha sofrido um acidente, precisava que ela fosse ajudá-lo. Só que a guria, nada boba, não apenas havia sido instruída com cuidado para esse tipo de situação como teve a tranquilidade de lembrar-se das instruções e moderar o impulso: sem entrar no veículo, perguntou sabiamente ao estranho qual era a senha combinada com a mãe para emergências. Pronto, o sujeito embatucou e foi-se embora, a fim de não atrair maiores atenções no local. Em casa a menina contou pra mãe, que contou pra polícia, que lamentavelmente não conseguiu achar o potencial sequestrador; porém é provável que a lucidez da quase-vítima tenha salvado também a outros possíveis alvos na região, visto que alguma informação do homem e da van ela pôde fornecer, criando um ambiente não muito acolhedor para o patife. Brenda James, mamãe da jovem heroína, se disse orgulhosa: jamais achara que a tal senha viesse de fato a ser necessária um dia (mas vejam só: foi), e a reação crucial da filha provou lindamente os efeitos de uma educação bem dada. Leis de nossa selva particular; não sabemos quem está ouvindo, não sabemos o que será lembrado, mas falar é eternamente preciso. 

Mesmo eu, desaparentada da menina de Phoenix e de sua mãe Brenda, fiquei orgulhosíssima de ambas pelo uso feliz de algo tão simples e funcional como uma senha de confiança (considerando, claro, que a expressão seja realmente ihackeável e indescobrível pelos mal-intencionados). Se bancos, redes, sites, aplicativos nos entulham de 4 mil e duzentas chaves diferentes para cada açãozinha – certos eles, tão errados não –, se até página de loja de biscoito nos exige password de 97 dígitos incluindo letra maiúscula, minúscula, número, ideograma chinês, amostra de sangue e pelo menos um jogador da Croácia, se para postar um meríssimo comentário de portal a gente tem de decifrar letra torta, marcar todos os quadradinhos que contêm a imagem de um estegossauro, pagar 32 flexões e cantar o hino do Suriname, cadê a devida burocracia para coisinhas básicas como arriscar a vida, fazer amizade, dividir apê, cair em love, aceitar pedido de casamento? Que perigo, meu povo. Por infelicidade não há escaneamento nem biometria d'alma, mas, enquanto a tecnologia não chega lá, vale monitorar uns easter eggs comportamentais antes de estabelecer qualquer link. 

Foi grosso/grossa com o garçom, porteiro, entregador, vendedora, manicure: é cilada, Bino. Enalteceu pátria/patriotismo e os "valores tradicionais da família": vade retro. Interrompeu (se homem) uma mulher falando e reexplicou tudo de seu próprio jeito, por mais que a especialista fosse ela: t'esconjuro, tinhoso. Surtou, deu soquinho na mesa ou parede, agiu horrível, porém voltou 10 minutos mais tarde com um buquê de 73 rosas, pedindo perdão: furada MAGNA – tanta rosa assim só é comprada por quem visualiza para breve uma coroa de flores. Segurou mais forte no braço uma primeira vez: que nunca tenha tempo para tentar uma segunda. Fez piadinha de preconceito ou não se revoltou contra quem fez: game over. Ironizou feminista: au revoir. Culpou a vítima: ERROR. Passou pano para tortura: never more. Compartilhou fake news comprovada e esbravejou indignadinho com a "censura": vai pela sombra. Declarou que não usar máscara ou não tomar vacina é questão de liberdade individual: vai pastar (aproveita, inclusive, que sem máscara é mais fácil). Falou mal pelas costas de gente que, pela frente, é amicíssima: HUM. É recorrentemente ingrato, controlador, manipulador, desrespeitoso, possessivo, agressivo – tenha lá recebido o troféu ou a medalha que tiver: so long, farewell, auf Wiedersehen, goodbye. Menor chance de dar um clique. 

Não me refiro, logicamente, à pretensão de encaixotar criaturas em padrões a que nem sempre correspondem, e sim à prudência de identificar aqueles onde já se encaixam: caso de autoproteção primordial, uma vez que, deploravelmente, bichos-papões teimam em existir sem nossa autorização e estragar nossos projetos de harmonia planetária. Se não nascemos para linchadores de presumíveis monstros, não nascemos para virar suas presas tampouquíssimo – e caminhar dia a dia no tênue dessa fronteira, lidar entre dúvidas com esse conflito delicado, pode mostrar fartos sinais de saúde no fim das contas. 

Prova que você não é um robô.

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