quinta-feira, 29 de outubro de 2020

(In)conciliáveis


Hoje faz 79 anos o angolaníssimo Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela, em cujo livro Mayombe faísca a frase "Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor". Não configura plaquinha de pendurar na humanidade? Trazemos em nós o inconciliável, e é tão imenso, tão saárico, que do primeiro ao último instante tentamos a conciliação entre o pedaço de nós que nos move e o que nos engole – lutamos para filtrar o desejo que nos empurra dentre a massa de incoerência que nos trava. Parabéns para nós, que passamos a vida nos sobrevivendo.

Somos seres sociais com maior ou menor necessidade de definir também o próprio território; somos habitantes do coletivo e da clausura, precisados na mesma medida do diálogo e do silêncio, construídos pela tradição que nos amamenta e pela libertação que obtemos ao questioná-la. Somos seres verbais que vivemos carecidos de pôr o mundo em palavras para entendê-lo, porém nós mesmíssimos somos os afirmadores de que uma imagem vale por mil palavras, ou um gesto, um abraço; e no entanto uma temporada apenas de gestos, olhares, abraços nos cansa – queremos ideia, queremos complexidade filosófica, discussão, discurso. Amamos a paz, pregamos a paz, rezamos pela paz, e apesar disso há um serzinho em nós que arde bélico, às vezes para o bem (se é que na rota do bem estão previstas algumas brigas); há um serzinho em nós que não sossega de fúria, não raramente assustando e amargurando a si próprio: tanta raiva, tanta raiva não condiz com quem eu sou. E quem eu sou? com quanto do que desejo e com quanto do que decido eu me faço?

Somos arquitetos, mas sonhamos viver de música, e ao viver de música desconfiamos de que o amor pela música saiu muito abalado pela lida cotidiana. Somos príncipes com a fantasia da simplicidade mendiga e mendigos quimerizando o poder principesco; aspiramos à renúncia absoluta e ao controle total, com o intervalo de alguns dias ou poucas horas ou dois segundos. Queremos Harry e Sally e Atração fatal, o amor tranquilo e o que joga na parede, aquele da longuíssima amizade e aquele que brota com o desconhecido no trem, a coisa equilibrada/ eterna e a coisa adolescente/ furibunda de um Romeu e Julieta. Estamos absolutamente fartos de nossa cidade e não sairíamos dela nem por nada; um terço de nós não vê a hora de morar no interior da França, um terço de nós grita que estamos loucos e nossa vida é todinha daqui, um terço de nós acompanha a treta dando razão a ambos e acalma os ânimos fazendo-os viajar. E voltar.

O tempo todo, a existência inteira permanecemos em certa medida inconciliáveis, e a existência inteira nos (re)conciliamos, o que aliás é (é?) inconciliável com a nossa natural inconciliabilidade. Resulta que o simples ato de levantar da cama e respirar ao longo do dia é efeito da energia, dos vapores dessas caldeiras; nos empurramos para a frente sob ação da ininterrupta fogueira que somos. Há, entretanto, limites para o embate, já que charretes puxadas por cavalos inconcordantes não vão a lugar algum, e forças iguais e opostas se anulam até a paralisia. Um lado precisa ser mais forte, o outro lado precisa ceder. A versão escolhida de quem somos ganha, pelo bem da viabilidade e da coerência; as demais, por autopreservação, engolem em seco; em prol do conjunto, somam forças à força alfa – mas em aflição e negociação permanentes. Cada um de nós é uma alcateia ambulante em disputa de posto perpétua. 

Qual de nossos lobos leva a batalha e vira líder do que somos? (Quem assistiu a Tomorrowland há muito está craque na resposta:) aquele que a gente alimenta.

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