quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Mal sabem eles


Que loucuras nenhum conhecido em sã consciência (ou muitíssimo distraído) diria que você seria capaz de cometer, porém seria, e não apenas em teoria sonhadora? No meu caso, apesar de me dar bastantemente a conhecer por dentro nos textos e memes e posts em geral, galerão que só tem contato de vista e sala de aula ainda prefere se fiar no estereótipo da cidadã quietinha e insuspeita. Little do they know. Que cafonice, gente, essa história de cair com ar totalmente naïf no conto dos óculos e da saia rodada, como se um viking, um Lampião, um Avenger ou um Cavaleiro do Zodíaco não pudesse estar ali confortavelmente abancado. Quando começar o apocalipse zumbi e me virem por aí metendo flecha e peixeira nuns cérebros defuntos, não digam que eu não avisei. 

Um negócio que eu faria de boinha: toparia entrar numa nave (amigável, claro) como a dos Contatos imediatos e dar um rolê por tempo indefinido. Cês perderiam a chance de interagir por um período gordo com um povo tão cheio das evoluções? Eu é que não, quero mais é um MBA em processo civilizatório, sem pressa de aterrissar. Saindo do âmbito estelar para o subsólico: eu nem pensaria duas vezes antes de aceitar o amor do Fantasma da Ópera; jamais teria dado a mínima confiança para o pão dormido do Raoul. "Uai, mas você concordaria em morar nos subterrâneos de Paris com um cara deformado??" Que pensamento pequeno, galera; ÓBVIO que sim. Amo Paris, amo passagens secretas e amaria ainda mais alguém que nunca tivesse sido amado. Que importa uma questãozinha estética de nascença? please. Vacilou rude, hein, Christine.

Eu também não hesitaria meio nanossegundo em me jogar numa tirolesa que fosse de um lado a outro do precipício – tirolesa que por sinal existe, fica no País de Gales e é um dos meus sonhos de consumo. Se anunciassem a maior e mais demorante montanha-russa do planeta, eu iria. Se houvesse convocação para a guerra e as alternativas fossem deixar partir alguém que amo ou me disfarçar de homem à la Mulan, eu me disfarçaria. Se me oferecessem voar nas costas dum hipogrifo à la Harry Potter, eu adoraria. Se me propusessem atravessar uma sala de cobras ou aranhas balofas para ganhar um milhão de dólares, eu enriqueceria. Se abrissem para além dos profissionais de saúde o grupo de testagem da vacina anticovídica, eu a testaria. Se tivesse a vocação da cura e visse a chance de me juntar um tempo aos Médicos sem Fronteiras, eu embarcaria. E nada disso, no-waymente, por ser especialmente corajosa, mas apenas por haver tido uma de duas cordas específicas vibradas: o agarrar da oportunidade que talvez não retorne e a necessidade premente do outro.

Em contrapartida, mesmo o que é sonho dos sonhos em outras leituras de vida soa, para mim, como um não inafiançável; tipo: faço a maior tirolesa das galáxias, cruzo um circuito topzão de arborismo, mas dirreininhum escalo coisa alguma. Danço rumba num agrupamento de serpentes por um milhãozinho, mas não me disponho a ter filho nem por cinquenta vezes isso. Moraria feliz com o Fantasma da Ópera nos esgotos, mas JAMAIS com um sultão entre suas farturas – e menos ainda com alguma criatura de berço ou de educação americana e europeia, onde quer que fosse. Voaria num dragão, num hipogrifo, numa vassoura, numa caixa de sapatos, num hipopótamo, mas NEM MUERTA no jatinho de um Donald Trump e seus pares. Doaria alegremente um rim a alguém necessitante, mas nem dez segundos de vida à presença daquele ser que nos desgoverna. Seguraria uma barata na mão, mas nunca de núncaras apertaria a mão desses equívocos-em-chefe. Mil vezes mais provável, inclusive, vestir um saiote fabuloso na barata e ensinar-lhe todos os passos do cancan. E da rumba. Entre serpentes.

Não é que eu seja, pois, mais ou menos inclinada para gestos ardentes, impulsivos, temerários; tenho simplesmente, como todos têm, aquela escalazinha customizada que vai do "Cool! Quero e quero agora!" até o "Nem em um milhão de anos", passando pelo "Seria uma honra fazer isso se fosse inevitável", pelo "Só faço se a outra opção for pular do Kilimanjaro" e outras demarcações tais. Somos, em realidade, um coletivo de individualidades bem precisas, um balaio de idiossincrasias que a capa não revela, de heroísmos que o traje civil não denuncia, de Supermen e Superwomen que os óculos, a gravata, a saia rodada, o paletó não deduram, mas estão ali pairantes, de tocaia. Todos, toooodos somos isso; essa realidade mista e maluca que congela diante de uma lagartixa e é capaz de garrar jacaré na unha pra salvar um transeunte, ou não pisa nem na espuma do mar e discursa para multidões nadando de braçada. Paradoxais? Todo dia. Previsíveis? Não tanto quanto os rotuladores gostariam para seu sossego quentinho.

Entre a ensimesmada que fala pouco e a doida que voa de uma ponta à outra do abismo em posição de águia, sou exata e coladinhamente as duas. Entre o combo das duas e o carimbo de classificação que lhes tentarem apertar sobre a pele, já vai um Kilimanjaro de distância.

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