sexta-feira, 9 de outubro de 2020

De onde vem a água


Considero especialmente tocante um poema de nossa brasileiríssima Adriane Garcia, "A origem da água", no qual a autora afirma que os peixes trafegam ininterruptamente tristes, "No constante de/ Carregar o mundo.// Sem os peixes/ Tão tristes/ As correntes/ Cessariam.// Ninguém se pergunta/ De onde vem a água?/ Ninguém desconfia/ Que os peixes choram?". 

Não pude deixar de doer: sim, há um mundo inteiro carregado por peixes tristes, porque nadam incessantemente tristes e vão compondo a realidade todinha no durante de seu movimentar chorado, suado, sangrado, salgado; peixes sem guelras, sem escamas, revestidos de outros respiradouros e outras couraças; peixes bípedes, falantes, caminhantes, pedalantes, mais acostumados aos sóis que aos anzóis, mas da mesma forma fisgados para o aparentemente inevitável. Peixes que as coisas obrigam ao sacrifício fantasiado de normalidade, peixes que as coisas empurram para o sofrimento compulsório, vivido com a (em geral) imperturbada convicção de que não tem outro jeito.

Toda a camada de gente testada e condecorada nas tempestades: são esses peixes. Motores mais ou menos conscientes do sistema que os come e os bebe. Pilares da economia que a economia frita e assa com prioridade. São esses peixes – os entregadores que volteiam, serpenteiam, arriscam-se o dia todo nas correntes, desviando de sustos e tubarões, encarando temperaturas extremas e guinadas súbitas; são esses peixes – as domésticas e vendedoras que desde as 3h30 estão atravessando o curso de ônibus em ônibus, de onda em onda, empreendendo uma quase migração diária para sustentar moradias e vendas, casas e ruas, vivências e comércios, o íntimo e o profissional; são esses peixes – os pequenos produtores que dão bravamente de comer a outros peixes, fugindo como possível às intempéries e aos latifúndios, a toda sorte de pragas e de venenos. Cozinheiros que abrem e fecham o dia no calor dos fogões, estudantes que se esfalfam conciliando a lida e o livro, costureiras que submetem olhos e dedos a longas jornadas de minúcias, pedreiros que tijolam por tijolam cada estrutura das cidades: esses peixes.

São esses peixes os líderes comunitários que cultivam amorosamente a arte e o engajamento nas favelas; os professores que cultivam olheiras monstras apreendendo novas estratégias e recursos; os cuidadores que cultivam bem-estares infantis enquanto famílias peixas estão labutando longe de seus peixinhos. São esses peixes os médicos de linha de frente que enfrentam todas as imagináveis faltas de oxigênio; os cientistas que se debruçam dormindo ou acordadamente sobre as alternativas; os garis que tornam salubres as calçadas e fogem incansavelmente ao risco de contaminações; os faxineiros que tornam salubres os prédios e descartam contaminações com escrupuloso cuidado. São os artistas, os marceneiros, os farmacêuticos, os repórteres, os bombeiros, os eletricistas, os frentistas, os motoristas, os caixas, os funcionários do metrô e tantos, tantos, tantos, tantos outros semoventes que pulsam, propulsam, propelem o oceano de forças que a todos circunda e alimenta. 

De onde vem a água? Ninguém desconfia, porque não há quem não tenha a certeza (ainda que inconfessa) profunda: vem de cada um que tenta, teima, sua, se fere, porfia, peleja, aguarda que a maré vire, espera que algumas correntes se rompam, outras se façam, todas se redesenhem.

E nada.

4 comentários:

Adriane Garcia disse...

Que coisa mais bonita essa transposição do poema para a vida! Obrigada. Um texto cheio de empatia e inteligência.

Fernanda Duarte disse...

Obrigadíssima a você pelo carinho, querida! Se os olhos da poeta estão felizes, não existe prêmio maior! 🤗😍😘😘🤩

Paulo Vilara disse...

Maravilha de poema; maravilha de texto, Fernanda. É muito prazeroso ler um texto como esse, tão sensível, inteligente e bem escrito. Grato.

Fernanda Duarte disse...

Superobrigada, querido Paulo! É uma grande honra receber sua visita e carinho. 😘😘🤩