sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Eu sempre quis fazer isso


Tem sido veiculado um comercial divertidíssimo (não me perguntem de quê; sou a prova do fracasso da propaganda em fixar produtos e do sucesso em fixar exatamente a propaganda) cujos personagens seguem e repetem o mote do "eu sempre quis fazer isso": uma barwoman manda uma bebida para o cliente fazendo-a deslizar por todo o balcão, um sujeito entra num caminhão parado no posto só para puxar a cordinha buzinante, uma guria atira o celular na água ao receber chamada do chefe, duas gurias sentam-se no restaurante e pedem um de cada, o cliente atendido pela barwoman diz à galera em volta que a rodada seguinte é por sua conta. Aqueles pequenos clichês que ganham dignidade e ficam deliciosos quando alguém se dispõe a rir deles e assumi-los como deliciosos. Afinal, quem nunca? sonhou meter um "siga aquele carro" ao entrar no táxi? se imaginou apressadíssimo nas ruas de Nova York, com um copo do Starbucks na mão? quis ser a phyna que está sem apetite e vai comer só uma saladinha? projetou um discurso daqueles em que a câmera vai se aprochegando, a música vai subindo e o arremate é uma frase de efeito com 10 graus na Escala Meme? 

Por causa do comercial, eu (provavelmente acompanhada da torcida do Corinthians) fiquei pensandinha nos meus "sempre quis fazer isso" – sem a obrigatoriedade, porém, de seguir o padrão Hollywood ou folhetim das nove. E vou te contar: trabalho pra mais de metro. A gente às vezes registra umas tantas ambições grandonas nalguma espécie de bucket list, e no entanto negligencia outras, por menores ou esdrúxulas ou secundárias. Não devíamos; temos modest(íssim)as chances em vida de curtir um bufê de evento pós-Oscar, mas nem por isso vamos falecer de coração desnutrido, à míngua de felicidade em forma de banquete e espalhafato. O espírito também vive de cafezinho.

Algumas bem-vindas alegrias cafezinhas, programadas para um futuro hipotético: ser um aeroporto de borboletas; descobrir uma passagem secreta (sim, tenho obsessão por passagens secretas, me julguem); surpreender alguém com um truque de mágica (não, nunca fiz); falar francês na França (não, não sei falar – em lugar nenhum); entrar num bistrô da França e pedir "o de sempre"; andar feito uma local num bairro da França, voltando para casa com as compras no colo e cumprimentando os vizinhos; ameigar um cãozito e ouvir "nossa, ele gostou de você, é difícil ele gostar de alguém"; atirar com arco e flecha como a princesa Merida, na cara da sociedade; brincar numa piscina de bolinhas; dormir sob as estrelas; virar doadora de medula; participar de uma coreografia coletiva numa festa – ao estilo De repente 30, se não for pedir muito; esbarrar com a relíquia de alguma família e entrar em contato para apurar a história (oba, história!); mandar um "fora, Bolsonaro!!!" ao vivaço no SBT ou na Record; assistir aOs miseráveis no teatro; montar uma sala de aula todinha temática. Não, não sei temática de quê, vê se isto é hora de pergunta difícil.

Mais? sempre mais: vestir traje de jedi e uniforme da Grifinória; aprender o tsuru e outras bonitezas de origami; fazer aquele exame de DNA que rastreia nossas origens genéticas; fazer dança de salão; fazer o teste de Rorschach; sair numa escola de samba, misturada num enredo de resistência; criar (ou, de preferência, encontrar) uma cápsula do tempo; decorar a casa ou apê de outra pessoa; jogar no mar uma cartinha devidamente engarrafada, mesmo que não numa garrafa; ser voluntária num estudo de vacina; arriscar equilíbrio nos patins (de gelo e de asfalto); pintar paredes; entrar na sala de aula (temática?) ostentando a plaquinha "NÃO corrigi as provas"; entrar para aplicar prova com a "Marcha imperial" tocando no celular; enviar mensagens felizes em papel para endereços aleatórios; recuperar a farra das bolhinhas de sabão; promover celebração ploc, com fantasias no dress code; adotar uma buganvília pra se enroscar na varanda; me atracar com as bochechas de um bebezinho japonês; escrever um livro em dupla; tomar vergonha e me alfabetizar em bicicleta e brigadeiro; passar um dia indo de sebo em sebo, sem qualquer limite de horário pro garimpo. 

Mais? eternamente. Não cumprirei talvez a maioria – para bem-estar dos bebezinhos japoneses –, mas catar possibilidades no mundo, colecioná-las, recolhê-las, há de ser atestado de saúde e sanidade permanente nesta atual atmosfera envenenada de trancamentos, nesta cruzada ideológica poluída de gaiolas. 

Sempre vou querer fazer isso.

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