domingo, 11 de outubro de 2020

Meioversários


Sou uma pseudodividida com relação aos mesversários que têm virado tendência entre papais e mamães babosos; ao mesmo tempo me vejo entediada entre declarações e declarações e declarações e declarações de amor descompensado pelos mini-humanos (nada contra declarações de amor descompensado em si, desde que com uma pegada diet e estética – amor também não é desculpa para cafonice irrestrita não, misericredo!) e enternecida por impulsos legítimos de celebrar a vida bocadinho a bocadinho. Não tenho como não defender calorosamente esses impulsos; esses impulsos e o pretexto ideal para ter fotos e mais fotos de criaturinhas gorduchas, bochechudas e mastigáveis na timeline, é claro. Um terceiro motivo para pender um pouco mais em favor das festas mesversárias é o fato de elas acrescentarem onze temas ao Grande Tema do ano – e, confesso, eu como mãe adoraria ter desculpa para fazer toooodas as decorações que viessem à cabeça, como se uma só criança encarnasse todas as escolas de samba do Grupo Especial e pudesse defender cada um dos enredos. Melhor ainda que o bacuri fosse excessivamente miúdo para opinar e eu tivesse licença para aloprar segundo minha livre escolha: ia meter Beatles, Mafalda, Star Wars, Amélie Poulain, Harry Potter, Divertida mente, Viva e o que mais desse vontade de brincar de. Se algum mala reclamasse (algum mala sempre reclama), eu era bem capaz de montar a festa Comunismo e mandar uns cupcakes de foice e martelo para a casa do entojado. Pelo perfil geral dos entojados reclamantes, era certeza de irritação e, com sorte, um bloqueio sossegante no Face. 

Tudo isso só para revelar solenemente que: a fim de garantir ainda maior amofinação dos que detestam e completo delírio dos que amam o mesversário way of life, a confeitaria francesa Vahiné e a agência Gray x Ogilvy estão se unindo para lançar a vela de bolo EM FORMATO DE VÍRGULA, de modo que os meioversários também possam ser devidamente soprados (sim, sim: níver de 3,5 anos, por exemplo). A velinha inusitada ainda não está à venda – só foi disponibilizada em kits para influenciadores e em concursos abertos ao público –, mas não duvido caia no gosto popular quando vier às prateleiras, o que é aliás justíssimo: em tempos pandêmicos tudo fica, mais do que o normal, para ontem; prazos se reduzem, urgências de vida se aceleram, exigências de que um ano inteeeeiro se passe até que novo bolo seja encomendado tornam-se obsoletas. Esperar o quê, carambolas? a criança está quarentenada em casa exigindo novidades, o sujeito teve alta após dois meses críticos e covídicos, o negócio vem sobrevivendo com baby steps na versão online, o casamento não dá nenhum indício de que um vá defenestrar as roupas do outro (ou o outro) nas próximas semanas, então bora comemorar! tim-tim! santé! Partiu brindar aos décimos, às partes, às metades, aos terços, a cada passinho vencido, a cada pouso bem-sucedido, a cada colesterol reduzido; partiu jogar confete pro alto numa quarta-feira, fazer reuniãozinha virtual pelo níver de descoberta do primeiro cometa, pelos 94 anos de publicação do Ursinho Pooh, pelo dia de São Asclepíades. Se tantas circunstâncias ruins nos avassalaram e avalancharam, por que não revidar com classe, dentro das normas de segurança e com o adequado distanciamento? Venham as velas e o bolo! – o motivo, depois a gente combina.

Sopremos velas pela palavra inaugural do bebê ou da dissertação, sopremos velas pela pintura da porta ou a foto de porta-retrato, sopremos velas pela perda de quilos ou o achamento de chaves, sopremos velas pela restituição do imposto ou o nascimento do passaporte, pela estreia no Investigação Discovery ou o fim da novela, pela segunda parecendo domingo ou o amor parecendo novo, pelo garimpo incrível no Mercado Livre ou a dedicatória no livro da Estante Virtual, pela formatura da prima ou a primavera na rua. Sopremos velas pela proposta de emprego, de namoro, de redação, de renegociação; sopremos velas pela final épica da I Copa Caseira Intercômodos de Dominó; sopremos velas pelo início do horário eleitoral (sim, tem partes hilárias, admita); sopremos velas pelos CDs, desenhos, diários resgatados do limbo; sopremos velas pelas receitas facílimas recém-atinadas; sopremos velas pela assinatura do streaming, pela primeira live com os pais, pela primeira frase dita em francês, pela primeira aula da pós. Sopremos velas pela lua cheia, a visibilidade de Marte, a obra do vizinho que acabou, o dente de leite que caiu, a temporada dos Irmãos à Obra que estreou, o bolo (para as velas) que deu certo, o plano do Trump que deu errado, o avatar que ficou fofo, o produto que tirou o mofo, a montagem da árvore de Natal, o chocotone aguardando na cozinha, a temporada de caça aos presentes. O tempo está dado, é e sempre foi o exatinhamente agora – para memorar, assinalar, celebrizar o que se passa entre nossas margens. Deixar o instante correr esquecido, subestimado, frouxo? Aguardar um só Momento convencionado para todas as agendadas gratidões que se acumulam em cascata?

Uma vírgula.

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