quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Raio eternizador


Foi um instantinho breve e (ao menos para mim) comovente aquele em que minha xará, participante do mais recente episódio do MasterChef, respondeu com lindeza ao chef Henrique Fogaça a respeito do motivo de estar chorando: "Estou aproveitando este momento para eternizar o fato de eu estar nesta cozinha hoje, chef". Achei simplesmente fabuloso que a competidora tenha verbalizado com tanta precisão e candura a sensação de reservar um minuto para emocionar-se, para apenas se embebedar daquela alegria em estado puro que veste as ocasiões solenes. Não solenes pelo aparato ou pelas conveniências externas, que contam poucos pontos por dentro, e sim por um pedacinho de maravilha que o coração encontra no formato de gema, de pepita, e na dimensão intransferível que só ele mede, só ele vê. Nossos fatos eternizáveis são particularíssimos; às vezes coincidem sim com realizações publicamente grandonas – feito a da Fernanda cozinheira, que não somente estava participante como foi vitoriosa na competição gastronômica mais famosa do Brasil (embora tenha chorado bem antes de chegar à vitória) –, mas se vinculam à consciência da coisa, não à coisa em si. É a lembrança da primeira cena do "filme" e a impressão de estar no clímax; é o fenômeno The Flash, em que o mundo parece rodar em câmera lenta e nós sentarmos num cantinho, em contemplação muda; é a adrenalina do point of no return; é a serenidade livre de quem de repente se vê de férias, já que um ciclo se fecha e o calendário foi rebootado; é o apreensivo alívio de quem constata não estar dormindo, o universo ao redor tem mesmo ruído, cheiro, toque e acontece em tempo real. É uma pocket avalanche, uma tsunami portátil da qual a gente faz foto ou vídeo mental para grudar no álbum que nos define.

Uma dessas "eternizadas" espontâneas me bateu ao entrar no Cavern Club, bar de Liverpool em que os Beatles começaram a estourar – e que também me explodiu em lágrimas à primeira descida de escadas, como se eu acessasse território sagrado. Confesso que, apesar de fã de anos do quarteto fantástico, nunca fui tão ardorosa a ponto de esperar reagir dessa forma ao pub icônico; mas vejam só, a gente se dá susto. A gente não tem plena ciência de alguns significados nossos que moram na realidade profunda. O caso é que fiquei focando e tocando os cantinhos da casa com uma espécie de transe e os olhos úmidos, tentando absorver de todo o fato de ser abraçada por paredes históricas (mesmo que reconstruídas, parece – o que não modifica em nada a energia local). Não é necessário que o raio eternizador desça tão epifânico, porém; ainda que mais contido e voluntário, vem como um print amoroso, reverente, daquele determinado marco no tempo: um olhar que prega uma tachinha em nosso mapa, o carimbo de um país emocional visitado. O fundamental é que, pelo menos numa mínima porção desse processo de registro, seja acionada unicamente nossa polaroid interna; nada de selfie pro Whats, nada de consumição pela foto perfeita para o porta-retrato da sala, nada de obsessão pelo melhor ângulo de filmagem – memória, somente; memória se construindo sensorial, anotando os aromas, dirigindo ternura aos últimos raios do dia maravilhoso, apertando com lucidez a experiência contra o peito, carinhando-a, sorvendo-a. Memória arrumada para festa. Memória se vendo no espelho em traje de gala. 

Toda ocasião memorável é de gala, por mais que o painel da foto seja o corredor de casa numa terça-feira de desaniversário. É preciso eternizar esse corredor, se o filho improvisou ali uns primeiros três passos; é preciso eternizar o último passo com que se adentra uma escola como aluno; a última olhada para o hotel no táxi rumo ao aeroporto; o último clarão espocado de um show de fogos da Disney; o último frame de um filme que deu nó no entendimento da vida. É preciso eternizar os dias de escolha: do sofá, dos padrinhos, do filhote, do noivo, da faculdade, da cidade, do nome do bebê. É preciso eternizar o abraço no ídolo, é preciso eternizar o "Hey, Jude" cantado em coro no show, a visita à locação da série favorita, o desfile da melhor amiga em direção ao altar, a refeição inaugural na casa nova, a palestra que gerou cócegas profissionais, o barulho assombrado das crianças na manhã de Natal, o banho de chuva, o bolo feito caoticamente em família, o formigamento da decisão certa, os acordes iniciais daquele musical no teatro, as páginas finais daquele livro arrasa-coração. É preciso eternizar o que houver de revolucionário e genuíno, o que assinalar qualquer "antes" e "depois", o que rearrumar em nós qualquer gaveta, qualquer conceito, qualquer categoria de existência. Tudo, perfeitamente tudo que for uma transição sensível. Tudo que entrar com porcentagem visível em nossa composição. 

É preciso emoldurar os bocadinhos de momentâneo que nos constroem para o eterno.

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