sábado, 17 de outubro de 2020

Questão de tempo


Adoro (e não conheço quem não adore) aquele cálculo bem machadiano de tempo feito por Brás Cubas em suas Memórias póstumas: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". É um dos desparalelismos mais geniais de nossa literatura e, em realidade, ilustra benzão como funcionamos por dentro – não necessariamente em termos de Marcela, mas de Brás; horas, semanas, minutos nos são perfeitamente cabíveis no relógio e no calendário, porém insuficientíssimos para o registro interno, que se apega a marcações mui particulares. Somos relatividades ambulantes só passíveis de algum entendimento sob a baliza de Greenwich.

Eu, por exemplo, cresci noveleira (já hoje não muito praticante; reservo a audiência para as obras de Lícia Manzo – e também acabei acolhendo, na segunda metade, a reprise de Totalmente demais), o que me faz infalivelmente escorada na lembrança dos folhetins para assinalar cada ano: lembro-me criança, cantarolando no ônibus as músicas de Tieta; me vejo comendo esfirra de carne aos 13, diante das Mulheres de areia; ouvindo, pós-estudo de oitava série, o tema de abertura dA viagem; lanchando com os olhos postos em História de amor, antes de uma missa noturna (Sábado de Aleluia ou Natal? não sei bem); assistindo a capítulos fundamentais de Por amor na sala de TV dum hotel fazenda queridíssimo, no qual descansei a loucura do vestibular; já na faculdade, imitando personagens de Laços de família e, mais tarde, adotando o adereço usado por Jade em O clone – tudo vem pronto e fácil, rápido e mais ou menos preciso, mas emocionalmente exato. Tão exato que ser atropelada por trechos das velhas novelices (no Viva, no Vale a Pena, nos anúncios do Globoplay) configura para mim um nível de tormento altíssimo, quase como encarar a moedinha-portal de Em algum lugar do passado. Não bagunce minha linhazinha emocional do tempo, mundo, eu imploro: deixe em paz as antigas impressões, que especificamente por serem felizes se querem lá, imutáveis, sossegadas, hibernando em sua redomemória incorrupta. 

Depois do casamento – vejam só que curioso – perdi quase toda a capacidade de linkar com exatidão os anos e as novelas, mesmo as que ainda acompanhei. Trago teorias: talvez na infância e adolescência o tempo corra de maneira mais retumbante, sempre desenhando aos gritos as fronteiras, inclusive com a mudança crucial e numérica das séries escolares; talvez na infância e adolescência um ano represente uma porcentagem muito imensa de transformação, o que não ocorre na mais estabilizada idade adulta. Ou talvez a oscilação brutal tenha morado mesmo entre a solteirice e a vida casada: em solteira, mantive referentes de tempo muito individuais, e agora é como se mergulhasse na temporalidade comunista do nós, na maior serenidade narrativa da história conjunta. Já inapta para me orientar por novelas, mais facilmente adoto as viagens que fizemos como bússola; sabendo onde estive, ligeiramente sei quem eu era. Quem eu época. 

Dependendo de nossas unidades intransferíveis, amamos por quinze meses e onze contos, ficamos arrasados por dois dias e um filme, nos desesperamos ao longo de três lojas, choramos no decorrer de uma dívida e meia, sorrimos por cinco episódios consecutivos, gargalhamos pelo espaço de vinte e oito memes, somos confiantes por dez selfies, eternos por dez ondas, infelizes por todo um governo. Lembramos quem fomos durante aquele comercial, aquela música, aquela peça, aquela praia, aquele seminário de escola, aquele trabalho de grupo naquela casa, aqueles instantes naquele museu, aquelas mãos dadas naquele passeio. Enquanto dava um minuto de Greenwich ou Brasília, quarenta séculos nos contemplavam. Em pleno meio-dia dos trópicos, uma aurora boreal nos nascia. 

Não há Doc Brown, plutônio ou capacitor de fluxo que nos transportem, nos programem, nos acertem com cronologia tão eficaz quanto o reloginho secreto que a alma carrega no bolso. A cada disparar de nosso cronômetro personalizado, um nosso pedacinho de vida é infinito enquanto dura.

Nenhum comentário: