quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Filhos da culpa


Não faltam, hoje, criaturas de vida aparentemente confortável e estabilizada – na parte financeira, ao menos – que ficam circulando por aí como pastéis de ódio, esbravejando ataques a torto e a direito numa fúria de Inquisição espanhola. É um fenômeno bizarro que (para usar uma expressão que acho fabulosa) causa-me espécie: por que carambolas voadoras gastar preciosos quaquilhowatts de energia agindo na rua, no condomínio, na internet feito um bicho hidrófobo, ainda mais neste calorão que só aumenta? Sim, eu assisti a O dilema das redes e sei que há um fortíssimo componente de algoritmo nessa loucura coletiva, mas mesmo assim não me parece que um bacilo virtual provoque sozinho um tal efeito, e sim que acorde bombasticamente alguma semente de fúria já existente no odiador. Não consigo compreender o ódio senão como fruto de uma questão individual mal resolvida.

Em seu romance Arquipélago, o escritor português Joel Neto meteu uma verdade que pode dar uma boa pista sobre esses mecanismos envenenados: "Não há ódio como aquele em que a culpa se transforma quando já não se pode transformar em mais nada". Bingo; um dos números essenciais para pontuar na cartela do ódio é a culpa. Culpa de quê? não necessariamente de ter cometido um crime (mas não raro até de ter sido vítima de um). Culpa por não ter percebido indícios de perigo; culpa por ter confiado na pessoa errada; culpa por não conseguir amar quem supostamente se deveria; culpa por nunca ter tido forças ou argumentos para reagir; culpa por se sentir um peso na rotina de alguém; culpa por fazer mal a seu próprio corpo inaceito, e com isso "reforçar" a opinião de quem não o aceita; culpa por ter renunciado aos sonhos profissionais lá no início; culpa por não ter gerado ou acolhido conselhos suficientes; culpa por estar afundando na identificação com quem é nitidamente excludente e raivoso; culpa por se permitir afastar do que se sabe mais importante; culpa por seguir num relacionamento de mentira; culpa por não ter peito de sustentar uma demanda pessoal diante de olhos que talvez a questionem. Culpa: essa Hidra de infinitas cabeças, de infinitos aspectos, insidiosa, traiçoeira, esmagante feito sucuri e – quando não enfrentada com os instrumentos corretos – paralisante feito Medusa.

Porque, notem, não é que todas as vertentes da culpa sejam ruins; muitas são necessárias, inclusive, e mostram que não temos um Hannibal Lecter tomando água de coco dentro d'alma. Porém, adianta patavina a culpa que "já não se pode transformar em mais nada", que não é trabalhada a ponto de virar (auto)perdão e mudança, que não recebe um acompanhamento especializado capaz de moldá-la em arrependimento produtivo, iniciativa, atitude, metamorfose do bem. Culpa é germezinho que não pode ficar parado e negligenciado, embolorando; se embolora, vai tornando todos os dutos mofados e irrespiráveis, o coração fica inabitável, vira residência ótima para fantasmas de dias passados e péssima para tudo quanto é vivo. Todo mundo sabe que lugar mal-assombrado é um pudim de quê? ódio. Se há gritos que ecoam e correntes que se arrastam por dentro, se nossos corredores estão povoados de sombras que repetem e repetem e repetem a ladainha sem nunca sossegar ou buscar um cantinho de luz, se o ar está empesteado e denso de memórias que se condenaram à prisão perpétua, nada anda, nada evolui; em nada evoluindo, vem a tendência de os fantasmas revoltados se voltarem contra qualquer visitante ou transeunte, sôfregos de compartilhar seu inferno particular. O ódio nasce classicamente de uma série de traumas, ressentimentos, remorsos que fermentam no baú e saem empedernindo gente até que o divã de algum Perseu, munido com o devido escudo e a devida espada, começa a atingi-los na garganta.

Ódios não brotam no bailão sozinhos, não aparecem tcharam! de uma geração espontânea; vêm de uma longa escalada de ervas daninhas encorajadas pelo discurso ou pelo descuido. Não se principia a achar a cura antes de, fundamentalmente, localizar e tratar a culpa que os pariu.

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