sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Bem-aventurados os rebeldes


Entre as mil frases geniais de Ibsen, impressiona-me muito a que diz que "o verdadeiro espírito de revolta consiste justamente em exigir a felicidade aqui na vida". A declaração resume tudíssimo que se possa discorrer a respeito de direitos e revoluções, apesar de sempre dançar à beira do risco de ser desvirtuada. Por que desvirtuada? porque haverá os que montarão no pretexto de embrulhar "felicidade" com "prazer", inevitavelmente, e vão partir para a interpretação egoísta e vida loka da coisa, o que se trata de uma falha hipopótama no GPS moral. Felicidade envolve prazer sim, porém não o hedonismo cru e cego dos que se tornam, precisamente, usinas de infelicidade para os outros. A felicidade de fato revoltosa, revolucionária, é indispensavelmente coletiva, mesmo em sua forma individual – ou seja: ainda quando envolve uma libertação do eu, implica libertação do nós, cria bons precedentes, dança entre as jaulas abrindo portas. A exigência rebelde de felicidade não se contenta em esconder a coreografia na sala, no quarto; baila desencarcerada no palco, com modos de Isadora Duncan.

É urgente também gritar que não existe oposição entre a fé religiosa em melhores lugares, melhores tempos, e o espírito revolucionário de buscar o melhor já agora. Muitíssimo ao contrário: a fé religiosa legítima em melhores tempos SÓ SE REALIZA, se concretiza, se justifica para os que estão incendiados pela premência de buscar o melhor já agora. O que NÃO EXISTE é simultaneamente se dizer religioso e aceitar pianinho as barbaridades do mundo, porque "é assim mesmo", "o que se há de fazer". O que se há de fazer é (no caso de o excesso de ignorância não desculpar em parte a aceitação passiva) deixar de ser hipócrita, deixar de ser covarde, deixar de empurrar para o infinito e além, deixar de sacudir os ombros, de suspirar culpando o destino, a História, Nostradamus, as moiras, os algoritmos, o calendário maia. O que se há de fazer é virar uma criatura que se informa, pesquisa, corta o fluxo das fake news, denuncia diariamente as atrocidades, se envolve em mutirões e campanhas, participa de abaixo-assinados, participa de manifestações, eeeeeenche o saco e a caixa de e-mails dos parlamentares, pressiona a justiça por providências, mobiliza a comunidade para a resistência, faz twittaço até que a opinião pública se ouça loud and clear, revindica, demanda, insiste, pleiteia, chateia, chateia, chateia. Sim, os integrantes de revoluções são chateadores convictos, profissionais, diuturnos; não têm necessidade alguma de pegar em armas, mas sem dúvida não podem fugir de pegar em almas e movê-las adiante com o máximo de amor e o máximo de teimosia.

Não tem jeito? Não. O preço da rebeldia autêntica é ser incômodo de alguma forma para os que promovem caos no planeta e para os que – desolados, desmotivados, desamparados, desinformados, desestruturados – compactuam com o caos. Viver a revolta no melhor sentido é tudo fazer para trocar o caos pela felicidade comum (comum em amplo entendimento: normal, cotidiana, desejavelmente corriqueira e acessível a todos). "Revoltosos" genuínos não procuram instalar desordem, procuram ACABAR com ela; que, afinal, a verdadeira e única ordem possivelmente aceitável envolve equidade de distribuição, entre nativos, dos recursos de uma Terra em que TODOS são nativos. A verdadeira ordem jamais esteve estabelecida, mas há milênios ainda por estabelecer: aquela de todas as curas, de nenhumas exclusões, de nenhuns preconceitos, de nenhumas arbitrariedades. Se não tivéssemos de ser rebeldes, inconformados, insurgentes, subversivos, não nasceríamos – permaneceríamos no paraíso direto; nada haveria, aqui, a construir ou aperfeiçoar; zero emprego para nossas habilidades e inteligências. Se viemos, foi exclusivamente para sermos rebeldes. Incapazes de ficar calados e parados enquanto Amazônias e Pantanais queimam, indígenas morrem e órgãos de proteção ambiental são desmantelados. Totalmente inaptos para assistir sem berrar ao despautério do feminicídio, da homofobia, do racismo, do nepotismo, do abuso infantil, da corrupção, da fome. Perfeitamente desqualificados para NÃO combater mentiras e demais violências. Rebeldes, é só isso que podemos ser com dignidade; inteiramente inadaptados à – e eternos reformadores da – logística insana do mundo. 

(Para no final descobrirmos, aliás, que a felicidade nunca esteve nos esperando na linha de chegada; saiu com a gente na partida e foi autografando cada pedrinha depositada no trajeto rumo a ela mesma.)

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