quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Das partidas


"'fulana venceu o câncer!', 'beltrano venceu o covid!' e tome de tratá-los como 'vencedores'. ok.
e quem morreu então perdeu, é um perdedor? é isso?
boh."

São palavras da querida Nina Paduani no Facebook (mantidas aqui em sua formatação original), e dão que pensar por meses. De antemão, posso dizer que concordo. Entendo perfeitamente o gestual linguístico de equiparar "venceu" a "curou-se de", atribuindo à resistência do organismo o caráter de poder, de conquista: vejam, ele/ela foi mais forte que a doença. No entanto, não posso deixar de assinar embaixo da declaração da autora; por mais que o falante ou escrevente não tenha qualquer intenção de depreciar os que faleceram em virtude de algum mal, acaba por fazê-lo, uma vez que a dedução é compulsória – quem não venceu uma doença automaticamente foi vencido por ela, ideia completamente péssima tanto para a memória do falecido quanto, em especial, para aqueles que o amam. Amados e amores não precisam dessa imagem de desincribilização da pessoa que "cedeu" ao que era de todo incontrolável; não precisam dessa nuvenzinha de "derrota" pairando sutil na despedida, como se houvesse um sopro sequerzinho de culpa ou fraqueza embutido em não ter aguentado. Culpa e fraqueza nem remotamente se aplicam à situação. Aquele ou aquela cujo corpo e cuja mente precisaram lidar com uma doença se inscreve de imediato no grupo dos que tiveram a doença – ponto. Não é competição, não é gincana, não é futebol; é uma contingência da qual pode ou não resultar morte, feito nuvem da qual pode ou não resultar chuva. Há nuvens vencedoras ou perdedoras? há nuvens: formam-se e cumprem-se. 

"Ah, mas ninguém está dizendo que os que morrem de enfermidade são fracos e derrotados." Sim, está dizendo; pode não declará-lo oficialmente, e entretanto o afirma por meio de seu contrário. Se fosse apenas isso, aliás, era ainda lucro: hoje um PRESIDENTE olhado e copiado pelo mundo inteiro (porque líder da still nação mais poderosa) se arvora em Superman e arrota que sarar de covid é fácil, afinal ele é um espécime físico perfeito e extremamente jovem. Pois é. Que esperar de uma criatura capaz de fazer pouco dos que morreram em guerra (ele fez, para choque e mágoa dos parentes de soldados), capaz de considerá-los losers pela inconveniência de não terem sobrevivido? A verbalização nojenta de Trump de certa forma reflete – psicopata edition – o sentimento nacional reservado aos "perdedores", os que não triunfam, os que não chegam em primeiro, os que combatem e são abatidos sem abater. Obviamente não quer dizer que todos os estadunidenses estejam prontos a "condenar" os doentes que perecem, porém quer dizer que esse subtexto do desprezo pela dita derrota perpassa sua cultura de um jeito forte o suficiente para chegar aos lábios do representante do país, e ser uma anteninha parabólica do pensamento ocidental. Infelizmente é fato: embora nem todos atribuamos o tamanho da carga negativa que um americano atribui ao universo do perdedor (talvez o maior xingamento que exista por lá), glamourizamos sim a ideia de vitória, invariavelmente atada ao que é externo – o vencedor que dá a volta por cima, que reaparece pleníssimo batendo cabelo, que recupera a saúde, que fica RYKOH, que se vinga, que dá uma surra no inimigo, que ganha no jogo de lavada, que tem a última palavra. Sequer roçamos a possibilidade de alguém que fez tudo isso se sentir o mais irrealizado dos seres no capítulo final, e de alguém que passou longe de cada item estar inteiramente reconciliado consigo e com os demais, dando a mínima pras picuinhas terrenas e transbordando de feliz em seus últimos dias.

Porque toda a nossa loucura, enfim, se resume a isto: vincular ao erro, ao insucesso, à fraqueza o que é também nossa certeza única, em vez de termos com essa certeza uma relação sem caos, sem desespero – de serenidade e sabedoria. Não é (óbvio) questão de celebrar a morte, e sim de não a encarar como algo paralisante em vida, de não a ver como punição mas como arremate, epílogo, fim de temporada. Espera-se que venha natural, sem ser fruto de injustiça, intervenção humana, negligência e maldade; mas que ela vem já está estabelecido, e portanto o mais cabível era fazer o exato oposto do que fazemos, o mais correto era falarmos sem pavor ou pesadume daquilo de que não falamos, o mais lógico era tratarmos com justa racionalidade o que é uma constatação e não um susto. Ainda conseguimos? Quem sabe em alguns milênios; por enquanto, administramos só muito porcamente nosso horror exacerbado. Mas já ajudava um monte se fôssemos parando de, com a linguagem, relegar à categoria de "derrota" a reação do organismo a um agente patológico – e me incluo totalmente nessa proposta de vigilância, comprometendo-me a não comemorar a "vitória", e sim a cura, a chance de o corpo sentir maior disposição enquanto continua escrevendo sua história aqui pela Terra. Pessoas que não obtiveram a cura não perderam, somente encerraram seu tempo de escrita, que viria em algum momento a encerrar-se como termina uma fruta, uma flor, uma chuva. 

A derrota legítima pertence aos que traem, por escolha, a destinação humana de elaborar um planeta mais viável para todíssimos. Quem cede com frequência preocupante ao lero-lero de seus próprios demoninhos egoístas: este, sim, é constantemente levado a nocaute.

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