sábado, 31 de outubro de 2020

Ameaça fantasma


31 de outubro é o dia da nhenhenhice dos malas: "Ââââin, Halloween não é festa nacional", pereréu, pereréu. Como se o Papai Noel (comentou brilhantemente um meme que vi esta semana) fosse originário de alguma tribo tupi-guarani. Como se ALGUMA COISA do que usamos, vestimos, falamos, celebramos fosse 100% filha deste solo, inclusive a bandeira, que ostenta as cores da nobreza gringa e não a do pau-brasil que nos batiza – mas isso é outra e mais longa história. Para além da ridícula e autodemolível questão do "patriotismo", há a hipocrisia feroz dos implicantes, que, como sói acontecer, não se enxergam. Aposto uma abóbora recortada que filhos, netos, sobrinhos dessa trupe se fantasiam de absolutamente tudo no carnaval (festa que não se originou, tampouco, entre aimorés e tapuias) – e vão bruxinhas, fadas, múmias, vampiros, caveirinhas no balaio desse tudo, com direito a surra de fotos no Instagram e outra surra de "titia ama, titia cuida" nos comentários. Os implicantes mesmos saem felicíssimos e purpurinados em blocos e mais blocos, não poucas vezes com chifrinhos na cabeça, mas quem liga, né non? só não pode em 31 de outubro. Aaaah, aí não. As criancinhas dos implicantes também se esbaldam pegando saquitos de doce um mês antes, sem fantasia; agora: juntar a fantasia do carnaval com a pegação de doce por algum motivo não pode, é feio, é soturno, não é tradicional. Come on. Me poupem.

Teimam uns malas: "Poxa, mas uma coisa é doce de Cosme e Damião, outra coisa é..." Parou, parou, parou. Pelo que já pude observar, não raros xingadores de Halloween acham um absurdo que algumas famílias, atualmente, não permitam aos pequenos pegar os costumeiros saquinhos de guloseima, e os classifiquem (os saquinhos, não os pequenos) como objetos do demônio – "Coitadas das crianças, não tem nada a ver isso, elas só querem doce!". Exatamente: coitadas das crianças; não tem nada a ver isso; elas só querem doce. Crianças gostam de fantasia e de doce, simples assim. Pra que o tratado linguístico-histórico-socioantropológico em cima do Dia das Bruxas brasileiro, ora pitombas? Tem roupa pra lavar, parede pra pintar nem currículo de candidato à prefeitura pra examinar não?? É verdade que há interseções: gente que implica TANTO com as sacolinhas açucaradas de Cosme e Damião QUANTO com o Dia das Bruxas, alegando que é tudo coisa do demônio (deve ser BEM exaustivo enxergar o capiroto em tudo, não sei de onde esse pessoal tira tanta energia). Me pergunto se a mesma galera bi-implicante já surtou em sala de aula ao estudar mitologia greco-romana, se já boicotou os Vingadores ou enfartou porque o sobrinho-neto estava vestido de Thor, se nunca na vida assistiu a nenhum Gasparzinho, nenhuma Pequena sereia, nenhum Crepúsculo, nenhum Aladdin – nada, nada? Por que pode fantasminha camarada e vampiro apaixonado, desde que não seja no Halloween? Por que pode entidade da mitologia nórdica – Thor, Loki, Odin – e não pode nenhuma referência a santos católicos relacionáveis a religiões afro-brasileiras? Por que pode bruxa do mar, bruxa-madrasta, bruxo-vizir nos desenhos, mas não pode na roupinha de 31 de outubro? Tá confuso, tem que organizar isso aí.

Vamos combinar: se, entre a galera que se ocupa em linchar a brincadeira do Dia das Bruxas, a gente for conceder licença-pedrinha apenas aos que forem incorruptos de toda e qualquer espécie de misticismo, superstição ou relação com o que poderia ser considerado bruxaria há alguns séculos, não vão voar nem dois cascalhos. Tem de excluir todos que já bateram na madeira, todos que já fizeram simpatia, todos que já consultaram o horóscopo, que já se disseram alvo de mau-olhado, que já botaram calcinha amarela no ano-novo pra chamar dinheiro, que já pularam sete ondas, que já meteram nota de um dólar na carteira (e nunca mais tiraram), que já fizeram ou comeram nhoque da sorte, que já carregaram amuleto, que já cruzaram os dedos, que já evitaram manga com leite porque sim, que já jogaram dente de criança no telhado, que já quiseram saber a fase da lua pra cortar o cabelo, que já usaram sal grosso para nada remotamente parecido com churrasco, que já pensaram duas vezes antes de passar embaixo de escada, que já desviraram chinelo ou tiraram a bolsa do chão, que já recusaram o último biscoito do pacote "senão não casa", que já deram três beijinhos "pra casar", que já espiaram canteiro de trevos em busca dum exemplar de quatro folhas. Até posso continuar, mas ainda sobrou alguém no recinto? Imaginei.

Fica a dica amorosa, lindões antirrelouínicos: tem um MONTE de perrengue real pra limpar no mundo. Vão pegar numa vassoura.

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