quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Fora do lugar


A gente não quer escrever textão fazendo os piores juízos, mas o povo não ajuda. Há alguns dias, a Igreja Episcopal de St. Barnabas (perto de Cleveland, nos EUA) colocou em seu jardim uma lindíssima e triste escultura chamada de Jesus sem-teto, a fim de "promover a conscientização a respeito da situação dos desabrigados em Cleveland" e "lembrar-nos de que todas as pessoas são criadas à imagem de Deus". Como se vê pela foto acima, a estátua consiste num homem, em tamanho natural, dormindo enrolado em cobertores num banco de praça; apenas as chagas da cruz nos pés descalços entregam a identidade do personagem (além das referências artísticas escritas na respectiva plaquinha). Pois eis que, cerca de VINTE MINUTOS após a instalação da obra, alguém passou no local, achou que se tratasse realmente de uma pessoa em situação de rua e LIGOU PARA A POLÍCIA. 

Ligou. Para. A. Polícia.

Vinte minutos.

Segundo a matéria do UOL, "A igreja diz que a resposta à estátua 'fala diretamente com seu propósito' e quem chamou a polícia teve uma 'preocupação genuína'". Certo. Acho até louvável e compreensível que a paróquia procure atrair pela doçura, busque palavras amenas e não queria dar declarações apontando o dedo na cara de ninguém, mas aqui entre nós podemos comentar mais abertamente: dá para imaginar o tipo de preocupação tida pelo "denunciante" – preocupação voltada, com 98,7% de probabilidade, para o conforto de quem NÃO estava dormindo no banco. Porque, convenhamos, se a questão fosse o bem-estar do suposto homeless nada seria mais fácil do que solicitar acolhida na igreja em frente, ou oferecer um prato de comida talvez; não é praxe que se invoque a polícia senão nas situações em que alguma ameaça se apresente ao invocador (briga, roubo, tiroteio, perseguição, invasão, excesso de barulho). Não é praxe que se invoque a polícia a não ser que algo esteja ou pareça fora do lugar. Evidentemente, uma pessoa que precise dormir na parte externa de uma casa está fora de seu lugar devido e natural – a saber, uma cama fofa e quentinha –; mas vocês me entenderam. 

Por que chamar a polícia? Porque a pobreza é criminalizada, senhores. A pobreza, assim como outras atrocidades (o estupro, por exemplo), fere a tal ponto a consciência coletiva que culpar a vítima se torna a distração clássica, a maneira psicologicamente mais fácil e pronta de lidar com o problema: o gatilho, o prenúncio de algo dar errado cabe sempre ao outro, não a nós, seja como agressores diretos ou como peças de uma estrutura agressora. O simples fato imaginário de um espoliado poder vir a querer ter o que temos configura, sob olhos treinados para o medo pelos verdadeiros espoliadores, uma intimidação ou um ato criminoso em potencial – aquela velha tática de condicionar pobres a atacar paupérrimos, dividir para conquistar, fazer jagunça a classe média, adestrá-la para cães de aluguel. Criando-se uma hostilidade contra o desconhecido sem posses (ele vai te assaltar, ele vai sujar a rua, ele vai "desvalorizar" a rua, ele vai usar drogas, ele vai trazer mais gente), estabelece-se um inimigo perfeito e previne-se, automaticamente, o desenvolvimento de qualquer empatia que leve a um mergulho na – e ao desmantelamento da – conjuntura doentia que tira tanto de tantos. Não, não veja ali um humano, um seu igual, segreda o mefistófeles do capitalismo neoliberal no ouvido do transeunte; veja um vagabundo, um viciado, um ser que vive manso enquanto você trabalha. Ignore o óbvio – o fato de ele não exatamente ser assediado por uma chuva de ofertas de emprego, o fato de morrer de fome durante suas "férias" forçadas – e odeie, odeie, odeie; o sistema vigente vai agradecer penhorado e observar a briga comendo pipoca.

Precisamos nem ir à lonjura de Cleveland pra ver a cadela do medo no cio; aqui do ladinho, em São Paulo, duas das figuras mais extraordinárias na defesa da dignidade dos sem-casa – Guilherme Boulos e padre Júlio Lancellotti – sofrem recorrentes críticas, ataques, acusações de que "defendem bandido". Boulos, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, já precisou esclarecer pelo menos 9.076.459.345 vezes que NÃÃÃO procede o discurso de que ele e o movimento "invadem a casa dos outros": o MTST só ocupa imóveis abandonados há anos, improdutivos, entregues por empresas à ação destrutiva e especulativa do tempo; imóveis cuja posse, portanto, se encontra em situação de irregularidade, e que podem e devem ser desapropriados pela justiça. Padre Júlio, por sua vez, até ameaças de morte tem encarado por causa de seu trabalho fabuloso junto aos desabrigados, aos quais trata com imensíssimo amor e tenta proporcionar toda a possível assistência. São essas pessoas profundamente comprometidas com a humanidade, em todos os sentidos, que muitos autodeclarados "cristãos" e "cidadãos de bem" difamam, intimidam, caluniam, perturbam – o que deixaria Jesus perplexo se já não estivesse bastante acostumado, por experiência própria inclusive. Não é de hoje que gente preocupada com a caridade e não com adulações (com o efetivo e não com o aparente, com a verdade e não com a reputação, com a presença e não com a postagem, com o serviço e não com a selfie, com a entrega e não com a conveniência) acaba crucificada em praça pública. 

Caso você tenha andado focadíssimo em garantir lei, ordem, segurança, bem-estar para as vidraças do Itaú, as instituições de lucro recorde, os megaempresários, olhe mais de pertinho: esse Deus que você tanto recita (e acredita?) estar acima de todos costuma se refugiar em outra espécie de banco.

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