sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Las hermanas

Declaro para os devidos fins que estou inadimplente com relação a Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, e seguirei eternamente impossibilitada de pagar o impagável. Eu não haveria, como sou, se Mafalda não tivesse havido: amor de infância que ajudou a gerar minha versão de alma adulta.

A história com Mafalda começou numa coleção de livros de psicologia infantil que pertencia à minha mãe e que – entre páginas sobre desenvolvimento, nutrição, brincadeiras, trabalhos manuais e a carambola a quatro – contava com várias tirinhas da pequena cabeluda. Eu passava horas folheando os volumes de capa dura azul, gostando dos muitos assuntos e, de quebra, sendo apresentada àquela nova melhor amiga, que não era ainda famosíssima no Brasil, especialmente em tempos pré-internet. Cresci lendo Mônica, Luluzinha e outras tantas; adorava, claro – não as excluí; mas a argentinazinha sem papos furados na língua era diferenciada, flechada certeira. Em algum Natal da adolescência, pois, meus pais me deram um dos maiores presentes de todos os séculos: o livro Toda Mafalda, que me fez atravessar a noite com centenas e centenas de tirinhas da fofa pela cintura, subindo para a altura do queixo e finalmente me afogando de deslumbramento. Eu era toda Mafalda.

Era também (quase) todos os demais integrantes da turma, principalmente o imaginativo e preguiçoso Filipe, a minúscula e combativa Liberdade, o caçulinha Guile – gourmet de terra e apreciador de chupetas on the rocks –, os pais amorosos, esforçados e perplexos; em menor escala, o ingênuo Miguelito e suas questões nonsense; com quase nenhuma simpatia, a egoísta e futriqueira Susanita e o burro, bruto, protofascista Manolito (de personalidades constantemente detestáveis, mas fundamentais para boa parte do peso criticômico das histórias). Leitura após leitura, incorporei de tal modo o texto genial de Quino que até hoje, se alguém mencionar uma tira aleatória, descrevo-a e completo-a sem dificuldade: ah, é aquela que diz assim, assim e assim. Eu e minha irmã temos, como referências comuns, diálogos mafaldos inteiros, que repetimos com ternura ou às gargalhadas. Ainda como aluna no curso de inglês, cheguei a falar da cabeludinha num show and tell, com direito a algumas tirinhas devidamente traduzidas; como professora de português, uso-as em provas sem moderação (ALGUM professor não usa?); tive camisetas da hermanita antes de ser modinha; usei bolsa estampada com sua famosa versão sonolenta; comprei um toy de pano da personagem como um dos primeiros objetos de decoração para o endereço pós-casamento. Só não fui ainda agarrar a pequena heroína em seu banquinho de Buenos Aires porque, quando planejávamos fazê-lo, veio uma tal pandemia e botou mosca na sopa – o que não deixa de ser uma digna ironia mafáldica.

O abraço na estátua ainda não chegou; mas precisa? Enlaçada, enleada, engajada já vivo há décadas no monumento-mor de Quino, na obra-prima de análise social, humor, encantamento, doçura que o traço do gênio esculpiu nas Américas. Nem posso, nem podemos imaginar quantas partes de nós não existiriam se Joaquín Lavado não nos tivesse feito o que sugere seu sobrenome – não nos tivesse enxaguado a alma com a força e a sabedoria de nossa jovem musa latina. 

Choramos todos por ele, Argentina.

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