sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Nem só de pão


O 16 de outubro é, simultaneamente, Dia Mundial da Alimentação e Dia do Pão, o que captura um professor de português no pleonasmo e na metonímia; pão, afinal, não apenas se insere no alimento como SIMBOLIZA o alimento com a coroa-mor: é "o pão nosso de cada dia" que pedimos orantemente, não a carne, não o grão, não o ovo, não a fruta, não o leite, apesar mesmo de nossa biologia mamífera. Coisa linda e imensamente significativa, já que pão exclui a morte ou a exploração de qualquer animal (reitero: não sou vegetariana, mas não é por falta de consciência e sim de vergonha na cara), algo por si só inclusivo, e além do mais é comida que não brota pronta – ou seja, conjuga a colheita da natureza ao trabalho do homem. "Nhâin, mas é farinha e tem gente que não pode farinha", vai grunhir um aporrinhante; OK, migo, só que nem toda farinha é grávida de glúten, como sabemos, e assim sendo a sua intervenção imaginária é mera impertinência. Há pães para todos os gostos e saúdes, democrática, icônica e maravilhosamente. Pão contempla carnívoros e veganos, típicos e (potencialmente) celíacos; reina pela manhã, acompanha à tarde e à noite, brilha em todas as recriações e culturas, não foge sequer à famosa alimentação dos prisioneiros, séculos a fio. Pão é massa de humanidade todinha (e aliás não deve ser coincidência referirmo-nos à coletividade como "a massa"). 

Mas nem só de pão.

Jesus mesmo o disse, dando um VRÁ no demônio em pleno deserto: nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. "Nhâââin, só que nem todo mundo é religioso, né?" Tô sabendo, mano; vamos combinar, porém, que o fato de a pessoa não ser religiosa de maneira específica não exclui sua sede natural de contato com o sublime, com o sagrado, com toda experiência que nos eleva anos-luz em relação ao animalesco, ao bestial, ao chão – toda experiência que nos torna humaníssimos, no melhor sentido. Sapiens nenhum foi programado para se ater à sobrevivência mais biológica possível, a vida inteira, twenty-four-seven, sem chance alguma de cultivo do espírito, sabedoria, sublimação; não temos escolha senão a inquietude, a incompletude, o irrepouso, a busca, a beleza, o conhecimento, a poesia, a filosofia, a teologia, a amplidão, a abertura crônica das asas internas, que não se manifestam fora mas atormentam de comichões o dentro, carecidas e insatisfeitas. Somos isto, esta faísca, esta fagulha; precisamos assar o que fermente muito além do almoço, precisamos levar muito mais que farinhas e águas ao forno, antes que a própria potência desse fogo e dessa fome nos consuma. 

Precisamos de arte – uma das nutrições mais suculentas de nossa alma voraz; precisamos tocar, amenizar, discutir, eventualmente principiar a curar nossas questões intransferíveis por meio dessa transferência; precisamos que a todos os olhos chegue literatura, pintura, escultura, teatro, cinema, nas mais várias formas, abrigando a maior diversidade de aspectos, de modo que nos enxerguemos uns aos uns e uns aos outros, que estudemos empatia, que provemos o valor reorganizante da linguagem, que acessemos vias aráveis da alegria e da angústia. Precisamos de ciência – de respostas diretamente dadas pelo mundo, desanuviadoras de enganos, combatentes de superstições malucas, possibilitadoras das curas que têm o amor e a arte como auxiliares e enfermeiros, destruidoras de preconceitos, agentes de alguma chance de permanecermos com um planeta viável. Precisamos extrema e urgentemente de afeto – a alimentação mais imediata depois que o corpo está saciado do sustento, ou, de preferência, concomitante ao próprio sustento; precisamos que mãos nos levem, braços nos apertem, corações nos escutem, olhos e sorrisos nos empurrem, amparem, acreditem. Não é nem que a gente não queira só comida, como diz Arnaldo; PRE-CI-SA-MOS não ter só comida, pela natureza de nossos algoritmos inevitáveis. Como diz outro Arnaldo: a regra é clara. Vá que sobrevivamos só de pão, mas viver – não vivemos; nada somos senão primatas ainda respirantes, a não ser que toda palavra que sai da boca de Deus nos bafeje de nossa exclusividade. Em versão ecumênica: a não ser que tudo quanto é feito para ser bom, belo, certo, grande, justo, fantástico nos transforme exatinho no que deveríamos ser, no que potencialmente somos. 

A alimentação física nos salva da ausência em nosso posto; mas é a nossa parte merendante do extraordinário quem responde à chamada.

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