domingo, 18 de outubro de 2020

Com palavras não sei dizer

Admito: eu odeio parabenizar. Não que eu odeie reconhecer todo o mérito de uma criatura, ou o talento, ou a capacidade de completar anos de casamento, de profissão, de vida; não. Reconhecer o mérito de alguém é coisa linda. Detesto mesmo é ter de elaborar discurso para, em dia de. Detesto ter de emitir dezenas, centenas de textos similares por ano, pouquíssimas variações possíveis, caminhos limitados (certo, não é inviável driblar os clichês, mas no tormento de driblá-los um segundo tormento se inaugura, que é o de investir mais imaginação e esforço e pesquisa no ato parabenizatório – tortura, enfim). Dado que TODOS os dias o Face joga na cara dois ou três aniversários distintos, fora os de filhos-namoros-formaturas-lançamentos-mestrados divulgados pelas pessoas mesmas, é muita canseira de afeto para seres arredios a expansões, principalmente verbais. Minhas expansões são mais ao estilo abraçante, esmagante até, ou são aquelas que curtem buscar com alegria o presente perfeito; mimar eu acho divertidíssimo (adultos, evidentemente; com crianças eu seria carinhosa sem dúvida, mas não as mimaria nunca). Sou verbal por ofício, digamos, e no entanto gosto à beça de relações em que não precise sê-lo.

É uma falha humana e política; todos têm o sagrado direito de receber 8.987.489 parabéns em seu dia especial, e de magoar-se quando não os recebem; mas mesmo ciente dessa verdade irrefutável eu deixo escorregarem algumas datas, no vai-não-vai de "depois eu encontro a imagem perfeita", "depois eu penso num texto bacana". Acaba que não encontro, não penso e fico plenamente culpada de não ter pensado ou encontrado, quando não é (juro) ausência de ternura – tantos amigos eu amo com paixão! –, e sim essa resistência desnaturada e incontrolável às manifestações de folhinha. Nenhum problema com festejos e rituais, inclusive adoro, mas uma coisa é carinho, gesto, memória, dança, e outra coisa é a emissão de palavras previamente formuladas, em geral vazias e enfadonhas à força da repetição eterna. Repito, porém: a culpa não é das palavras, a culpa é minha, que não me ajeito com boa parte das convenções de relacionamentos civilizados. Ou não me ajeito com obrigações linguísticas – daí também minha aversão aos termos acadêmicos, às formalidades, aos protocolos (até para chamar alguém de "senhor", "senhora" sou bem ruim, misturo com o "você" que sempre usei com a família inteira, tropeço ridiculamente; é de imaginar que eu caísse solenemente na gargalhada se, num Congresso da vida, precisasse lançar "Vossa Excelência" aos quatro cantos, como praxe). Em suma: bicho do mato.

Sim, sou bicho do mato apesar de urbana, avessí(ssíssí)ssima a verbalizações compulsórias apesar de amante da língua, ou muito provavelmente por isso mesmo. É quase um milagre que eu diga "te amo" assim na fuça do destinatário – e, na eventualidade de o Vaticano registrar o milagre, com certeza a declaração há de ter sido por escrito. O normal é que esses meus textos de amores falem de uma terceira pessoa, que a exaltem em efígie, que sejam uma espécie de malhação do Judas ao contrário, como a que (desconfio) estou fazendo agora: dizendo de meus amigos que os amo; que lhes desejo as mais vitaminadas felicidades daqui até Saturno, contornando os anéis, fazendo um desviozinho até Plutão e voltando; que eles são fabulosamente sensíveis, empáticos, bem-humorados, inteligentes, e com sua presença virtual deixam os dias quentinhos – ou fresquinhos, conforme as demandas deste clima do Hell de Janeiro; que eu adoraria ser mais competente em sociais e recadices (talvez haja ainda condição, estamos trabalhando para melhor atendê-los). Digo que sou assim diagonal e extraviada de nascença, torta, de afetividade gauche e escapona nos pequenos compromissos, mas espero que pronta para os maiores, tanto quanto eu possa desdobrar-me. Digo que, sem ser às vezes a presença aparente, procuro continuar pairante, espiando aqui do cantinho qualquer tarefa que me sobre ou me caiba. 

Aos vários queridos, solicito paciência com minhas vacilações e afastamentos de passarinho sem bando. Continuo, embora inapercebida, por perto – voando em torno dos que fazem níver de primeiro de janeiro a 31 de dezembro, na tentativa sincera de soprar easter eggs dum carinho (volta e meia) difícil de desengasgar.

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