terça-feira, 6 de outubro de 2020

Dificuldade adquirida


O ensaísta francês Joseph Joubert tem, sobre a escrita, uma frase que adoro: "Para escrever bem deve haver uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida". É assim, precisamente. A parte da facilidade natural eu creio não gere questionamentos; é raro topar com um escritor que de alguma forma não o tenha sido sempre – não tenha enchido diários e cadernos e páginas de redação num borbotar mais ou menos espontâneo e farto, por mais que defeituoso. Assim como os dotes para música, desenho, esportes e outrices, normalmente a mania da escrevinhação se manifesta cedo, às vezes nem no papel mas nos lábios e olhos de fazer frase, fazer rima. Isso o lado da nascença, que é fonte bruta (o "ouro nativo", a "ganga impura" de Bilac), destrabalhada, rebelde; a forma bela e insuficiente. O minério recém-colhido. O potencial. Sobre o potencial in natura, entra a dificuldade adquirida: hora de voar aresta para todo lado.

Quem escreve adquire dificuldade lendo o escrito pelos que adquiriram dificuldade. A dificuldade é a necessária, a indispensável dúvida: começa-se a pôr desconfiança e limar excessos de inocência no que se derramava num jorro e assim ficava, desorganizado, ocasionalmente tosco, filhote de cisne que podia dar em lindeza mas não passava dum ensaio despenteado de elegância. Quando se lê, e lê, e lê, e lê, e se conhece o cisne, já não se projeta vaidosamente o cisne naquele patinho cambaleante que depositamos no ninho. Para cisne, falta tornar-se; falta perder o irregular da plumagem, o descabelamento, a cor indecisa que não vai nem vem, e assumir seu rumo cromático definitivo; falta acertar o ritmo claudicante, ganhar envergadura no estilo e na proposta, levantar pescoço – ser tão mais ousado quanto mais atento ao predador e à presa, atento ao ambiente, aos exageros e às carências, aos buracos e às repetições. Não é porque palavras furaram a casca, não é porque andam e quackeiam no papel, que a ave se cumpriu. Escritor é ave que (na própria opinião) não se cumpre. Morre e ainda considera que não houve dificuldade suficiente no voo, que muitas alturas faltaram, que da ponta à ponta da asa podia ter havido mais impulso, mais diâmetro, maior cobertura. Escritor pode ser medalhista de ouro em pódio olímpico e still ser atleta descontente, com a impressão confessa ou inconfessa de que há músculos seus com lesões imbastantes.

Adquirir dificuldade é lida que não acaba (e abrace lida em quantos sentidos quiser). Sinônimos hão que ser escavucados, já que termos traiçoeiros escorregam do hábito e se repetem à traição; frases que soam perfeitamente lógicas na segunda aparecem dúbias e quebradas na terça; pleonasmos nos fazem corar, os devassos; mesmo quando obedientes à gramática, concordâncias arranham o texto, sapateiam, embirram e só param com a manha se toda uma sintaxe é reestruturada a seu gosto; rimas surgem de penetra e somem em caso de convocação; o que é dito ameaça desdizer-se no depender de uma vírgula à esquerda ou à direita (ou travessão? ou parênteses?). Uma vez que vai estudando para dificultar a vida, que vai treinando a vista para o desassossego, que vai amadurecendo o jeito de não ser mais, o escritor adota inconscientemente como hard a escrita do início, a excessiva falta, o muito descuido; amolda-se à sofrência a ponto de (em certos dias) não identificá-la. Já não há facilidade senão a enrustida, nem dificuldade senão a declarada: é tudo um só amálgama de esforço, alegria, dança e suor chamado estilo – esse refogado de carnaval com sessão da Câmara. 

Tem moleza nesse ofício-rapadura não, e nada o descreve melhor que o polissíndeto gentilmente emprestado por Bilac à minha heresia: escritor trabalha, e teima, e lima, e sofre para saber qual é a sua.

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