sábado, 10 de outubro de 2020

No embalo


Morro de invejinha desse pessoal das novelas que é dotado de uma das mais inacreditáveis habilidades humanas: fazer mala como quem passa um guardanapo na boca, vapt-vupting na cara da sociedade. Nos últimos capítulos da recém-reterminada Totalmente demais, por exemplo, chegava a dar agonia. O cidadão supostamente iria passar UM ANO em Paris, mas na véspera à noitinha ainda não tinha começado a aprontar a bagagem; acabou que o cidadão não foi, no próprio dia da viagem se arranjou para que os pais do cidadão fossem, e eis que as malas de ambos brotaram fagueiríssimas, já sendo puxadas no aeroporto; outro cidadãozinho, convocado em domicílio pelo primeiro cidadão – quando o sistema de som do Galeão JÁ PRINCIPIAVA as chamadas para o voo – a tomar seu lugar na segunda tentativa de embarque para Paris, meteu UMA MOCHILA nas costas e lá foi, rumo a 365 dias de afastamento; ainda outra cidadã decidiu topar outra aventura de doze meses pelo mundo (na véspera à noitinha, claro), e não podia ser diferente: apareceu de manhã prontérrima com uma minimalinha, praticamente bagagem de mão. O namorado (sensato) estranhou, a cidadã alegou ser bom deixar algumas coisas para trás. Algumas, concordo. Mas esse povo vai fazer turismo ou ingressar num Largados e pelados ali pelo caminho?

Qualquer pessoa cujas faculdades mentais não estejam à beira de uma interdição sabe que mala, assim como Roma, não se faz num dia – ao menos não da noite para o dia. Mala decente, que eu digo; aquela com ínfimas possibilidades de deixar de fora itens absolutamente essenciais. O processo de aconchegar as várias necessitâncias dentro do recipientão pode até durar menos de 24 horas, não discuto, porém isso é só o chapeuzinho de Mickey no cocuruto do iceberg, que coroa uma loooonga rememoração de roupas, remédios, acessórios, artefatos, sapatos, utilidades, livros, perfumarias a perder de lista. "Ââââin, mas você está exagerando, não é tudo isso" – é tudo isso sim, e normalmente quem faz muxoxo e manda umas de guru da simplicidade é o esquecidinho que vai pedir onze empréstimos diários aos parceiros de trip, ou então nunca fez mala, sempre a teve feita e providenciada por cuidadores de toda ordem. Mala é o release the Kraken, meus amigos. Mala é a cerimônia de iniciação do guerreiro. Mala é o estágio não remunerado do abismo. Mala é Esparta.

Pra fazer mala tem que (ter disposição e) lembrar tesourinha de unha, cotonete, desodorante, enxaguatório, cinto, grampo, estojito de costura, cadeados, mais cadeados, chaves de todos os cadeados, capa de chuva, guarda-chuva, meia pra bermuda, meia pra calça comprida, band-aid, lixa, álcool gel, protetor solar, fio dental, gancho para bolsa (sim, sim, não é todo banheiro que tem, e euzinha aqui nem muerta ponho nada no chão), fone, carregador, condicionador, perfume, bloquinho, caneta, creme de pentear, gilete, lenço seco, lenço úmido – isso apenas como pálida amostra, e só porque não tenho filho nem uso maquiagem, o que economiza três anos de enxaqueca na hora de sair arrebanhando itens. Pra fazer mala tem que admitir: a gente sofre afta, asma, inflamação, azia, alergia, cólica, enjoo, dor de cabeça e músculo e barriga, tosse, febre, gripe, nariz-entupice, cansaço, queimadura, depressão, hipertensão, e precisa de todas as possíveis soluções portáteis, de todos os pocket tratamentos ao alcance. Pra fazer mala tem que compreender, prevendo: o lugar de destino amanhece friozinho, mas engrena um quentume horroroso, mas venta que é um desespero, mas chove quando menos se espera, e convém dispor de todo comprimento de manga, todo truque imaginável. Pra fazer mala tem que estar de atenção aberta para o fato de que aquela blusa, crucial para aquela calça, não casa senão com aquele sutiã, que não é porém o mesmo daquela camiseta reservada para aquele outro passeio, em que a roupa, aliás, deve estar apta a molhar bem e secar depressa – jeans e tênis, nem pensar. Trabalha-se enfim com uma ciência informal de hipóteses, de planos B e C (no mínimo), uns planos D e E na bagagem de mão caso a outra extravie, mil milagres para não passar do peso, mil estratagemas baseados nas diversas configurações do roteiro, consciência de que talvez não dê pra comprar nada por perto nem lavar nada no hotel: talvez o quarto não tenha onde ventilar, onde arejar, onde recuperar a tempo. OK, fazer mala é perrengue chique (e ah! se todas as amolações fossem essa), mas perrengue anyway – pelo que eu deixo aqui minha reformulação: fica a invejinha redirecionada para a galera de Hogwarts, que se teletransporta quando quer ou então enfia a casa inteira no baú e acabou-se.

Mesmo assim, declaro-me aberta a doações de passagens para Paris de uma hora pra outra. Sou uma fazedora de malas atormentada, mas ainda não sou maluca.

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