quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Gaiola das loucas

O autor francês Jules Renard sintetizou milênios de devoção à escrita numa frase: "Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido". Mas, gente – e não é? Só essa maravilhosidade de estar quieto, retirado, recolhido compondo de si para si os pensamentos, que nem mulher rendeira ocupada com a renda interna; só esse troço sublime de se encontrar em período de monólogo, com todinho o tempo necessário à tessitura da fala sem a ansiedade do outro, sem a respiração e o atropelo do outro – só isso, se não for a coisa mais libertadora do mundo, entra molinho no páreo. A conversa falada é um pequeno caos, especialmente agora que o ser humano se torna mais e mais incontinente por influência de pressa, pressa, pressa e estímulo, estímulo, estímulo; cada vez menos dada à paciência e à delicadeza da escuta, cada vez menos aguardante de que processos cognitivos se concluam docemente antes de passar com seu trem-bala verbal, a espécie afrouxa progressivamente na arte de bater papo e trocar ideia sem ficar parecendo um viveiro de araras malucas com música de rave ao fundo.

Não é difícil perceber que não sou fã de conversas audíveis em tempo real. Culpada. Principalmente em grupos maiores, me pesa a insuportabilidade de a gente ir falando mais aos berros à medida que o assunto avança. Mas o piorzão mesmo, ao lado dos decibéis insanos, é o hábito mais insano ainda de darmos carrinho na fala uns dos outros, de nos abalroarmos feito bate-bate de parque de diversões no espaço sonoro. É tenso: quem odeia gritar e se sente tonto com a sobreposição de vozes normalmente tenta encontrar um intervalinho de silêncio para emitir som, com a prontidão ansiosa dum sujeito que precisa atravessar, sem faixa de segurança nem sinal, a principal avenida da cidade em horário de rush – ou capturar um saco de arroz no meio do aniversário Guanabara. Quando finalmente se pilha um segundo, uma faísca de oportunidade no fogo cruzado, a tendência é sair-se correndo com a fala e acelerando o argumento como um Forrest Gump que voa para o touchdown. Não é a corrida pelo gosto da corrida, é a corrida ameaçada pela sombra da voz alheia que a qualquer momento derrubará a nossa na área, o que reduz poderosamente o gozo de estar com quem se está e de ousar um tímido espectro do que costumamos chamar de comunicação.

Não digo que eu não seja também uma interruptora; somos todos nascidos e criados nessa selva de predadores linguísticos, e só com desusada evolução espiritual (que não tenho) deixamos de nos sujar na guerra de barulhos. Mas verdadeiramente me odeio quando entro nessa espiral de loucura, e viro mais fã ainda de todos os bons e serenos escutadores, que não alimentam a mania de terminar frases alheias – no máximo dão uma forcinha gentil, se notam o outro em extremo sofrimento para expressar o que sente –, não matam a linha de pensamento de alguém para introduzir novo assunto, não impõem uma quebra do silêncio fora de seu ciclo de maturação, dão espaço VIP para que um raciocínio não-seu respire, cresça, role na grama, brinque, se desenvolva. Não ser – e pouco encontrar – interlocutor assim leva ao desânimo conversesco e ao maior apego à civilidade da interação textual: cada um morando no seu tempo, sem o atravessamento e a urgência e a impaciência e a demanda de outra voz que bufa sobre o ombro; cada um com calma de sobra para entender-se e elaborar-se, e para sentar (se honestamente disposto) a fim de entender e elaborar a outra parte, considerando que equívocos de interpretação não nos separem.

Em era pandêmica, as circunstâncias mesmas conspiram: ave, palavra escrita – os que ainda vão morrer de ódio da balbúrdia-com-delay das videochamadas te saúdam.

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