sexta-feira, 6 de novembro de 2020

De janeiro a janeiro


Qualquer aprendizagem é um livro de prazeres. Hoje, sem-querendo, aprendi que o haikai – aquele instigante formato japonês de poema em três versos – tem como uma de suas características marcantes o chamado kigo, ou seja, "palavra de estação". Eu nunca ouvira falar em kigo, mas realmente já tinha reparado na tendência haikaísta de situar a cena sempre entre indicações de brisa, floração, mês, temperatura, qualquer pistazinha que nos leve à correspondente estação do ano; é claro fruto (opa!) da muito íntima relação da cultura japonesa com os ciclos naturais e o delicado combo dos ciclos naturais com as vivências humanas. O kigo pisa no texto com seus sapatinhos de tempo – às vezes diretíssimo ("calor de verão", "vento de outono"), às vezes mais bailarino e sutil ("ipês floridos", "Dia de Finados") –, acarinhando a gente de contexto, ancorando a leveza. Achei lindo e ainda mais supremamente poético esse detalhe típico de colheita na lavoura haikaica.

Apesar de pequenina como um terceto do Oriente, e tão apaixonada quanto os nipônicos pela florada da sakura (que jamais pude ver ao vivo, infelizmente, mas está anotadinha na bucket list), não sei se conseguiria ser tão sazonal. Nasci carioca, cresci carioca; amei sempre a natureza em sua constância, em sua verdice eterna, em sua perenifolidade, por mais que a velha amendoeira do jardim ficasse volta e meia caduca a ponto de deixar o chão intransitável. Não me lembro de ter invejado nunca as crianças filhas de estações marcadas, as que colhiam abóboras no outono, ficavam presas em casa pela nevasca de inverno, acolhiam os primeiros derretimentos de primavera como um renascimento efetivo – enquanto eu tinha flores e frutos rebeldes o ano todo, calor o ano todo, céu azul o ano todo, tudo vivo, tudo verde, tudo acessível e contemplável e muitomente à mão, de janeiro a janeiro e além. Concordo que as estações assinaladas por ícones sejam românticas; eu sou (literariamente) romântica; mas sou sobretudo arredia à paciência dessas esperas, mesmo as poucas esperas naturais que cabem aos originais aqui da São Sebastião. Sou insaciável do sim, creio – o que é um dizer nada bonito, porém inofensivo no meu caso; só significa que gosto da estabilidade como base e de suas indisciplinadas surpresas como tempero, em vez do disciplinadíssimo ciclo primavera-verão-outono-inverno como ordem e método.

A estabilidade bagunçada de nossas estações me permite miniesperanças aleatórias. Viver um típico ano carioca já é fugir do típico: sabe-se que o alicerce fica aí por uns trinta graus, mas quem sabe? a gente pode muitíssimo bem torrar em pleno agosto e se sentir de mãos e pés gelados em novembro (estou assim agorinha). É um estorvo e uma diversão. Nada está dado, há espaço para se poder usar uma roupa desejada mesmo "fora de época", pode sim vir a esquentar, pode sim vir a esfriar, planejamentos roupescos de mui longo prazo exigem criatividade para planos bês e cês, tudo é esta alegre fluidez que nos caracteriza (sim, sim, especialmente nos últimos anos tem muito a ver com o aquecimento global NADA alegre; me perdoem, no entanto, não trazer a questão fundamental que neste texto soaria dissonante, e me concedam por ora trabalhar só com os o-quês e não os porquês). Tanta mobilidade contenta algumas inquietudes que se entediam com o já agendado; confesso, por exemplo, ficar suficientemente aborrecida com o certinho da lua – que se põe cheia só de mês em mês –, com a temporada tão estreita dos caquis, com a amofinação de chegar a fase do sol batendo direto na cozinha e chateando os olhos. Amo a cerejeira, mas não tenho espírito de cerejeira: não quero floradas efêmeras que se aguardam o ano todo e, uma vez chegadas, qualquer chuvaréu destrói pra só no ano que vem; não quero primavera contada nos dedos; quero abundância de flores, sempre, muito, o tempo todo, sem a pressão da raridade. Quero todas as frutas disponíveis, quero céu azul ou tempestade a qualquer hora acontecentes, quero o fluxo sem margens, quero os dias de gala presentes sem amarras, quero a vida ininterrupta, quero tudo. O tudo isento de todas as ausências.

Sim, é bonita demais a tradição do pensamento, da expectativa, da orientação temporal escorados no kigo. Mas não comigo.

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