terça-feira, 17 de novembro de 2020

Stand-byers


Nosso Millôr Fernandes definiu criança como sendo "esse ser infeliz que os pais põem para dormir quando ainda está cheio de animação e arrancam da cama quando ainda está estremunhado de sono". Concordo muitissimomente – até por ser um caso menos de pitaco e mais de constatação –, e tomo a liberdade de acrescentar: adulto é (na maior parte das vezes) a mesma coisa. A diferença crucial é que, em versão adulta, esse ser infeliz engloba a criança e os pais; ele é o torturado sendo ele próprio o torturador, embora normalmente não se torture por mero impulso de servir a uma dominatrix que o pisa com dois ponteiros, e sim pela urgência de ser agradável a quem o alimenta. Motivos que eu sempre considerarei extravagantes têm um frissonzinho especial no ato de encaixotar a nós – milhões, bilhões de organismos distintos, com agendas e ritmos peculiares – num Grande Padrão de produtividade e sono, por mais que seja óbvia a desfuncionalidade: pessoas que moram looooonge do emprego cruzam a cidade na ida e na volta em modo zumbi, exaurindo-se nos bancos de trens e ônibus, quando não apagam de pé contra a parede; pessoas cuja consciência só atinge os 100% de carga lá pelo meio-dia precisam estar atrás do volante às 7h, raciocinando e metabolizando um trânsito que, para mim, seria astrofísica avançada em qualquer horário; pessoas que não sabem nem o nome depois do almoço cabeceiam na mesa, sem ter onde ou como providenciar uma sesta; pessoas e pessoinhas que estudam em horas avessas à sua biologia desmaiam o nariz no livro, impossibilitadas até de um 2 + 2. Não bastantemente, os já péssimos sonos da vida urbana ganharam, nas últimas décadas, o atravanco luxuoso de computadores e smartphones, reis daquela luzinha azul hipnótica e obsedante cunhada no inferno. Nada há de ruim no capitalismo que o capitalismo não seja bem-sucedido em piorar.

"Nhâin, lá vem você com o capitalismo." Ué, meu amor, vou vir com quem – com a Liga da Justiça? com o Kid Abelha? com o Curupira? com o papa? Venho com quem vive de funcionar fazendo-nos funcionar mal, funcionar só o suficiente, e ainda nos culpar por não estarmos funcionando. Na lógica em que estamos chafurdados, é essencial que nossas singularidades permaneçam domadas; demonizadas, se possível (levanta a mão quem nunca ouviu nenhuma inferência de que um indivíduo pego cochilando é "preguiçoso" ou "vagabundo". Alguém? alguém?). É essencial que a meta a ser batida vire um Graal e o descanso vire frescura; que a marcação do expediente se torne parâmetro e todos os demais agendamentos orbitem em torno do sol profissional; que o excesso de desafios desafios desafios estímulos estímulos estímulos nos mantenha atiçados e, paradoxalmente, de corpo tão exausto que não consigamos, fora do trabalho, mergulhar em nada muito filosófica e sociologicamente profundo. É essencial que não haja um período significativo desse fora do trabalho, aliás: que continuemos alcançáveis e disponíveis a um deslizar de dedo na tela, que vivamos num sobressalto pavloviano a cada tremidinha ou barulhinho do zap, que "durmamos" com a ansiedade embaixo do travesseiro, feito máquinas que na prática não desligam nunca, ficam somente a um toquezinho de tecla que as sacuda do stand-by. Não passamos mais, dentro de fábricas, as 12, 14 ou sei lá quantas mais horas absurdas que se passavam, nas priscas eras da Revolução Industrial; e ainda assim – considerando, claro, todas as imensas evoluções de regulamentação, batalhadas com muita luta e muita greve – os tentáculos não desistiram, sofisticaram-se apenas: funcionários são sinuosamente persuadidos ao cabresto numérico, à prontidão virtual, ao debater-se maripôsico na luz que sorri altas inocências.

Isto não é (insisto sempre, sempre) um libelo contra tecnologias: tecnologias são irreversíveis, e em grande medida muito boas. Digo simplesmente que quaisquer discursos que tornem a presença delas compulsória – na cama, na mesa, no banho – não são confiáveis. Quaisquer discursos que toquem terrorismo suficiente para nos manter em desassossego, entrecortados a cada repouso e obedientes a cada "plim" de um brinquedinho iluminado, não são confiáveis. Se estamos há milênios fugindo de predadores, nos enraizando e buscando (como espécie) um cantinho para nos abancar sem medo, já é hora de resgatar a coerência biológica e afogar essa ditadura da apreensão: apaguemos a luzita azul, apaguemos nossos afobados superegos para que haja sono e trégua bastantes, desapeguemos das velhas estruturas históricas que nos preferem androides, autômatos. É só da pálpebra para fora que esses programadores vão contribuir para que andemos de olhos bem abertos.

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