sábado, 7 de novembro de 2020

Subnutridos de beleza


"Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!"

Essa boniteza em cápsula é de Mario Quintana, e nos define que nem luva desenhada em alfaiate: subnutridos de beleza, todos nós, sempre. Se o organismo funciona relativamente bem e nenhuma anemia (ou perversidade) moral nos toma, somos uns eternos famintos do belo, gulosos de algum pedaço de céu, de mar, de lua; somos poemas ambulantes fuçando latas atrás de rimas ricas, escarafunchando internets e bibliotecas na sofreguidão de encontrar carne boa sobre tantos ossos, revirando páginas e arquivos e gavetas e museus pela esmola de um afresco, uma canção inédita, uma inspiração vadia feito a bola que ninguém imaginava capaz de gol. Vivemos ansiosos da próxima paixão estética na Netflix, salivamos sobre fotos de paisagens extraordinárias, babamos programas de decoração e viagem, de comida e hotel, de passarela e vestido de noiva. Se aparecem na timeline imagens de bebês, bichinhos, bochechas adoráveis, devoramo-las com a fúria de escaravelhos carnívoros (eu devoro), febris do amor canibal que a alma tem pelo que a encanta; somos simultaneamente a necessidade da delicadeza e o impulso de zumbi esfaimado que atravessamos até ela.

Por que tanto som e fúria? Provavelmente por causa da pouquidão do regime de muitos – tantas horas por dia, tantos dias por semana afastados, alijados de qualquer possibilidade do sublime. Sim, o corpo continua respirante se entre os telefonemas para cliente não há chance de ler um livro, o corpo continua sobrevivente se não há janela nem vista nem respiro para abrir uma fuga na baia apertada, o corpo continua caminhante se não há beira de praia ou jardim secreto (ou algo que vá além da fumaça de avenida) para aquarelar os passos; respira, sobrevive e caminha, no entanto, como um tigre alimentado exclusivamente a miojo sabor frango ou costela: apenas o arremedo de vida, sem a vida mesma. A ausência da beleza, a falta da administração diária de doses de beleza enfraquece, subnutre; ainda que o orgânico atinja um mínimo para driblar a morte, atrofia-se a alegria de driblá-la. É preciso que a beleza em quaisquer formas amacie o espírito e o torne trafegável, é preciso que a vivência e a convivência da beleza areje os olhos, ventile neurônios, plante sutilezas, desareste ideias, sugira estradas. É preciso que a beleza nos ponha em contato com novas compreensões da própria beleza, nos amoleça a visão para ser berço de outras visões, nos comova a inteligência para almofadar o abraço, nos amenize, nos lapide, nos torne aptos a que experiências recorrentemente moças entrem pela mesma porta. A beleza humaniza, sensibiliza, limpa das sinapses o ranço ferrugento do cotidiano; quem seca para a beleza seca para tudo mais, quem vira inatingível e inerte ante toda materialização de beleza demonstra a última aridez de humanidade, o limiar da consciência infecunda. O quase impossível deserto absoluto, isento até da pétala, da gota, do desvio de oásis. 

Um timbre, um tom, um reflexo, um prisma, um prato, uma forma, uma sombra, um cartaz, uma pupila, um mármore, um balé, uma página, uma lâmpada, um acordo, um acorde: nacos de estrela que desenterramos das horas e alimentam, ainda que com insuficiências para nosso vácuo, a massa estelar de que somos feitos.

Nenhum comentário: