sábado, 21 de novembro de 2020

Explica pra mim


Dois tweets fabulosos – e suponho que traduzidos, no traslado para o Face – de Heather Thompson Day, que reproduzo aqui apenas com leves adaptações e correções na grafia:

"Quando eu tinha 19 anos, meu chefe disse que eu devia ser operadora de tele-sexo e riu.
Eu falei: 'Não entendi'.
Ele disse: 'É uma piada'.
Eu disse: 'Explica pra mim'.
E assim eu aprendi que, quando assediadores têm que explicar por que suas piadas impróprias são engraçadas, eles param de rir."

"Meu pai me ensinou: 'Nunca sorria. Eles propositalmente assumirão que sua risada nervosa é submissão. Em vez disso, finja confusão e observe enquanto eles explicam o motivo da graça'. E eu tenho usado esse conselho desde então."

Heather & Father, aplaudo-os de pé e dando aquele assobio de dois dedos que nunca saberei imitar (acolham a intenção, queridos). Em poucos caracteres, atingiu-se o nervo: assediadores são seres eminentemente covardes, hienas que só estabelecem algum império sobre a ossada das autoestimas que vão pisando. Qualquer mínima reação da vítima que eles consideram carcaça e toda a valentia implode, já que não há plano B – não há outros recursos além de uma aguardada leniência cultural, não há nenhum guarda-chuva fora da confortável zoninha de normalidade fake em que se abrigam esses subpredadores.

Fique claríssimo, desde já, que: 1) reagindo a vítima ou não, a culpa não cabe a ela nunca, nunca, nunca; seu nervosismo perplexo NÃO é condescendência, e JAMAIS lhe pode cair na conta um débito que pertence única e exclusivamente a homens canalhas maiores de idade, vacinados, vermifugados (não o suficiente) e portadores de título de eleitor; 2) estamos falando aqui de subpredadores, reitero – não gente capaz de perversidades audaciosas como um Ted Bundy, não gente que só na base do enjaulamento, e sim infelizes ainda dentro do espectro da "gracinha", da "piadinha", da "brincadeirinha". A transição se dá num fiozito de nada, eu sei, mas digamos que o tutorial de Heather se aplique preferencialmente àqueles espécimes que costumamos chamar de tios do pavê; todo mundo conhece o tipildo: é o que lança as maiores barbaridades com ar bonachão e se tolera com riso amarelo por ser chefe, colega, família, amigo da família; quando eventualmente questionado ou flagrado em aberta biltrice, ah, que exagero, você entendeu errado, o mundo tá muito chato, que coisa, não se pode falar mais nada também. Não, NÃO se pode falar mais nada que pese como constrangimento e assédio – nunca pôde, em verdade, e está mais do que em tempo (sempre em tempo) de reforçar limites e rédeas. Vai gaiatear e gaslightear pra cima do teu sofá, da tua mesa, do teu travesseiro, imbecil: suas "brincadeirinhas" não passarão.

É preciso criar um mundo não apenas chato como INSUPORTÁVEL para os idiotas: envergonhá-los serena e impiedosamente (aliás, deixá-los envergonhar-se sozinhos, sem estender nenhuma sombra de riso amarelo ao resgate), não lhes facilitar a vida no público ou no privado, cutucá-los com tranquila elegância a fim de que sejam obrigados a encarar, muitas vezes com plateia, sua própria escrotice. O método Heather & Father é maravilhoso por configurar um anticrime perfeito; não permite ao pústula sequer a saída precária de se dizer acusado pelo outro, uma vez que não há acusação – somente um posicionar de espelho, um espaço solene para que o bostejador acuse a si mesmo. O fato de ele estar ciente de sua inconveniência, e de se ver às voltas com a necessidade de verbalizar o indefensável, só torna tudo mais passível de pipoca. É sentar e observar o embaraço, o arregalamento, a gagueira, a surpresa indignada de quem contava achar cumplicidade em seu alvo e em seu público, mas acabou sozinho e com o risito nervoso (devolvido) no colo, sob os holofotes do picadeiro.

Melhor ainda: trata-se de estratégia multiúso, perfeitamente aplicável também contra piadinhas racistas, homofóbicas e assemelhadas – com a chance-bônus de contemplar o preconceituoso, se minimamente avesso a delegacias, tentando se safar de um possível enrosco criminal. Quanto mais hostil e espinhenta se desenhar a situação para os calhordas, quanto mais incômodos lhes forem os olhares, quanto mais perderem empregos e patrocinadores, seguidores e respeitos, melhor; que a terra lhes seja inóspita, que o ar lhes chegue irrespirável, que em torno deles nenhum empreendimento germine, que sua vida seja um colchão de cactos social até que eles, sim, se amaciem como humanos, adestrem a língua, se for o caso andem com focinheira imaginária. Que se virem, que lutem; não são as vítimas da incivilidade que têm de suar frio, são os nativos da babacolândia que devem pisar miudinho se não querem ser deportados da civilização.

Nenhum comentário: