quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Fragmentados


O cientista norte-americano Ray Bandar possui mais ou menos 7 mil crânios de animais. O islandês Sigurdur Hjatarson reuniu quase 300 pênis de animais. O vendedor de charretes Sérgio Cintra guarda pelo menos uma ficha telefônica de cada estado brasileiro e algumas gringuinhas: alemãs, portuguesas, argentinas, paraguaias, etceterenses. O ex-pastor Paul Luke precisou fazer um armazenzinho no quintal para acomodar suas mais de 10 mil garrafas de leite. A britânica Carol Vaughn já chegou a cerca de 5 mil barras de sabão, de todo tipo e nacionalidade. A americana Barbara Hartsfield ultrapassou as 3 mil cadeiras em miniatura. Sua conterrânea Nancy Hoffman resolveu dar um lar feliz a mais de 730 capinhas de guarda-chuva (sim. As capinhas). O inglês David Morgan arrebanhou pelo menos meio milhar de cones de sinalização. A cantora Deborah Henson-Conant fundou o Museu da Comida Queimada, para expor todas as carbonizações culinárias possíveis. O historiador John Reznikoff acolheu, em suas gavetas, mechinhas de cabelo de Edgar Allan Poe, Albert Einstein, Abraham Lincoln e mais cabecitas famosas. E por falar em famosidade: Penélope Cruz é louca por cabides. Regina Casé, por vassouras. Angelina Jolie, por facas. Tom Hanks, por máquinas de escrever. Johnny Depp, por bonecas Barbie. 

Acho doidalhaça a dedicação que esse povo celebrado hoje – hoje, Dia do Colecionador – gruda nas mais aleatórias, nas mais avulsas improbabilidades, como se para construir um totem de si precisasse amealhar cacos de uma caça ao tesouro. O mais fascinante é a abrangência, a roleta-russidade da escolha; há desde os canônicos selos e moedas (eu definitivamente, por ligar a coisa à imagem de homens-seríssimos-com-pastas-de-couro manipulando os itens com pinça e paciência em gabinetes de madeira, não seria nunca desse grupo) até o extremo da bizarrice: gente que coleciona sachês de ketchup, pacotinhos de açúcar, fezes fossilizadas, baratas – SIM, vi foto de uma menininha que cria CENTENAS de baratas, e as BEIJA –, borrachas em forma de comida, bigodes de gato, bibelôs de sapo, caudas de sereia, cotocos de lápis, fitas métricas, coçadores de costas, adesivinhos de banana, tudo & qualquer traquitana com estampa de dálmata. Nada parece existir, sobre ou sob a superfície terrestre, que não possa randomicamente ser elevado por alguém à condição de joia do infinito ou pacote de figurinha; você está voltando do almoço para o serviço e VRAU, é acometido por uma revelação maia ou asteca de que deve consagrar a vida a reunir todos os tipos de guardanapo do mundo, todas as gravações do Biafra, todas as embalagens ever produzidas da batata Ruffles. É isso e acabou-se, é a parte que lhe cabe neste louquifúndio, não questione. 

Má ou boamente, me falta a disciplina febril dos colecionadores – esse espírito de catalogação, essa entidade filha de Indiana Jones com bibliotecária que possui a alma dos obcecados. Sou preguiçosa demais para ser obcecada. Evidentemente há temas e coisitas que me definem e representam: Mafalda, Amélie, Loki, Coringa, Mickey, beija-flores, cerejeiras, romantismos, esquerdismos, harry-pottismos, elementos que mui recorrentemente as minhas pessoas veem por aí e dizem "lembrei de você". Se chego a adquirir algumas peças relacionadas, no entanto, não o faço com propósito de coletar nem me vejo imbuída de missão; cadê tempo, espaço, drive, sistema para me entregar à alegre insanidade dos stalkers de bugiganga? Acumulo bastante papel, é fato, mas mezzo por motivos de magistério, mezzo por indolência na hora de rasgar impressos que contenham dados pessoais (PENSE num ódio: CPF e endereço na nota). No acumular de busca, mesmo, e não naquele advindo de prostração, o que eu poderia incluir são os livros – livros de autores do século XIX, mais exatamente; esses sim eu pesquiso, caço, arranco dos confins de sebos e de outros países, necessário sendo; se realmente quero aquele título ou aquele autor, viro um perdigueiro, um cão farejador da Polícia Federal. Configura coleção? não sei; sinto certo desconforto em categorizar livro na mesma prateleira de enfeites de coruja, Funko Pops ou tampinhas de garrafa. Livro é um utilitário, um mantimento moral. Ninguém, ao que me conste, afirma colecionar os biscoitos, doces, alimentos vários que venha a consumir – a não ser que não os consuma; ou mantém o conteúdo intocado e entocado, em estado de coleção, ou o faz cumprir-se como conteúdo e abre mão da ideia de considerá-lo artigo de vitrine. Ou o incorpora – ou o exibe. Daí que bibliotecar tende muito mais para a antropofagia do que para a adoração.

A alergia é a prova dos nove: se o acumulador de títulos mora entre estantes abarrotadas e não dá um! espirrinho, alerta de coletador na área. Amantes reais, famintos, que vivem se enfiando no vaivém das páginas, não conseguem deixar de meter o nariz onde são chamados.

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