domingo, 8 de novembro de 2020

Ciranda de pedra

Às almas falecidas e carnívoras que babam pedindo pena de morte – como zumbis que só guardaram, da vida, uma memória deturpada de apetite, perderam a reflexão e conservaram unicamente o reflexo –, dedico sem saudosa lembrança estas palavras de Mia Couto, sempre luminoso e preciso: "Quem congemina vinganças acredita antecipar-se ao futuro. É um logro: o vingador vive apenas num tempo que já foi. O vingador não age apenas em nome de quem já morreu. Ele próprio já morreu. Foi morto pelo passado". 

Sim, corações vingativos não simplesmente matam – deixaram-se matar, deixaram-se morder pelo contágio do ódio; uma vez tornados mortos-vivos, com a oxigenação parada e a atividade cerebral reduzida às unhas e maxilares, adotam o que nenhum'alma plenamente viva e sã pode adotar, que é o canibalismo. O canibalismo em nada relacionado com aquela antropofagia ritual de quem procurava absorver forças, mas sim algo meramente catártico, destruidor, linchador, predatório. O canibalismo hidrófobo que, atiçado pela cultura de Datenas, Sikêras e seus pares, aprende nada mais que salivar pelo castigo, pelo destroçamento; instrui-se em nada mais que no primitivismo do "olho por olho", na fúria de práticas medievais, senão mesmo naquelas próprias das cavernas, quando os conceitos de humanidade ainda estavam na creche.

Vingadores e vingativos foram mortos pelo passado ou, na mais generosa das hipóteses, vivem nele: vivem em épocas neanderthais e uga-bugas, congelaram em eras milenarmente anteriores a pedagogias e filosofias – inclusive cristãs, como muitas dessas almas atônitas OUSAM definir-se. Esgoelam-se falando de Jesus, e no entanto mostram preferir como mestre um Calígula, um Herodes, um Drácula, um Átila (não o Iamarino: o Huno); botam Deus na treta do "bandido bom é bandido morto", fazendo a pêssega quanto ao fato de Seu filho ter sido morto como bandido e entre bandidos. Berram que em nome de Jesus isso, em nome de Jesus aquilo, fingindo ignorar que o nome de Jesus nunca se atrelou a berreiro e vingança – muito ao contraríssimo: ao ser invocado emanou doçura, distribuiu perdão, representou disponibilidade, recomendou misericórdia, evitou apedrejamentos, promoveu diálogos, ligou-se a curas, mudanças, recomeços, novos caminhos, novas perspectivas. Até onde sei, foi a única coleção assinada por seu nome; qualquer histeria rancorosa, violenta, armamentista, bélica, torturadora é versão grosseira, pirata – produto da concorrência.

Não, o vingador não está só pensando em quem já morreu. Aliás, eu tiraria o "só": o vingador não está pensando em quem já morreu at all, apenas batiza seu próprio vulcão de ódio com o crachá do morto e usa a violência alheia como pretexto para sua ansiada erupção. O vingador existe acorrentado a raivas muito antigas e particulares, a frustrações muito suas, e portanto o que menos deseja é a racionalidade da verdadeira justiça; deseja o oposto, deseja a desculpa para o rompimento de suas comportas, deseja o alvará imaginário para seu show de agressividade há muito fantasiado. Corações doentes de vingança já vinham adoecidos antes do ato a ser vingado, e o ato em si é a mera supuração do acúmulo de ressentimentos. Isso inocenta o criminoso? de forma alguma; porém é fundamental que o criminoso em questão pague somente – e do modo mais justo e construtivo possível – pela culpa que ele mesmo carrega, jamais por todas as demais ofensas a serem exorcizadas por seus acusadores. De uma ciranda de sacos de pancada recíprocos e cíclicos não se tira um mundo que mande a bola pra frente: tira-se um clube da luta niilista em que todos acabam cegos, desdentados, inutilizados de fanatismo e exaustão.

Ou vamos à forra ou vamos adiante; quem nos quer de energia centrada na revanche – quer desviá-la da renovação e da revolução. Já é mais que hora, creio, de deixarmos de ser vermes roendo frias carnes, caso não queiramos construir um planeta senão de memórias póstumas.

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