segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Apenas vidro


Na série "trechos que resumem a humanidade", preciso sublinhar dois versos da poeta Micheliny Verunschk (poema "Darkness", livro Geografia íntima do deserto) que pegam forte na carótida: "esse jeito de eternidade/ que as coisas adquirem mesmo sendo apenas vidro". As coisas seríamos nós, em verdade; nós, criaturas sumamente vaidosas e bestas, piolhos chutáveis com um peteleco que se acham o Colosso de Rodes – sendo que mesmo para os Colossos de Rodes há sempre um terremoto possível.

Somos apenas vidro, mas adquirimos esse jeito de eternidade de quem engoliu o Império Romano e acha que são fake news os visigodos. Dançamos na pontinha do abismo, temerários, intermináveis; nunca é nosso carro que beija o muro depois de umas cervejotas, nunca é nosso corpo que tem overdose no meio da rave, nunca é nosso pulmão que vira uma pedra inútil após décadas de nicotina ensandecida, nunca é nossa própria família a atingida pela arma que guardamos na gaveta – até ser. E então ficamos simplesmente cho-ca-dos com a revelação da finitude, indignados com a audácia da realidade em ignorar o fato de habitarmos um clube VIP: relooooou, sabe com quem está falando?? Sim, é o senhor mesmo, a realidade responde com o imperturbável dum oficial de justiça deliverando a carta de citação; o senhor é o que chamam de "mortal", não é? está certinho, assine aqui, adeus. 

Somos apenas vidro, mas adquirimos jeito de granito, quartzo, diamante, vestidos de uma negação furiosa. Só em torno de nós paira um ectoplasma que transforma vírus em glitter, só nosso crânio foi inoculado de adamantium na maternidade e dispensa o zelo do cinto de segurança. Nosso hotel tem mais estrelas, nossas joias têm mais cores, nossas contas têm mais vida, nossas vidas mais valores: os males que o mundo alvejam não alvejam nosso lar. De algum modo bizarramente autorizado por um cérebro que os livros garantem racional, o pensamento mágico com frequência nos assume, nos rege, nos coloca valsando no precipício, aglomerando sem máscara, negligenciando claros sinais de burnout, deixando pra lá o coração em todos os sentidos cabíveis, adiando o tempo com os filhos, postergando sonhos, tolerando horrores, defendendo (ou ignorando, que é quase o mesmo) políticas assassinas de todos os âmbitos de saúde imagináveis. Fingimo-nos invulneráveis, inventamos uma displicente vitalidade para não encarar nossa frágil vitralidade – quebravelzinha num toque, num clique, num sopro, num raio, num acaso. Projetamo-nos dia sim, no outro também como seres confortavelmente inexistentes em sua inviolabilidade – avatares de nós mesmos –, e nos tornando quem não existe é que tentamos sobreviver ao medo da inexistência. 

Ciranda-cirandinhamos a vida toda inadmitindo que o fato de não nos assumirmos vidro foi o que mais nos quebrou.

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