quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Desperfumes


Agorinha há pouco, no Face, um post perguntava aleatório: de qual cheiro estranho vocês gostam? O autor da dúvida existencial se declarava fã, vejam só, do cheiro de obra, aquele de quando as casas e apês ainda estão em processo. OK; cada um tem o comfort smell que lhe apetece – as estruturas cerebrais lá sabem quais associações e histórias avalizam um odor, não outro, e contra as razões crushescas do cérebro não há argumentos. Já vi relatos de gente que: curte fertilizante porque se liga à memória feliz do bisavô jardineiro, ama incenso antimosquito porque lembra as noites mediterrâneas, adora cheiro de CONTROLE REMOTO (sim, tem isso), de consultório médico, de tinta de caneta, de tinta de carro, de tinta de cabelo, de pneu novo, de coco embolorado, de batom rançoso, de poeira, de cano, de corda, de CREOLINA, de comprimido, de rádio (o aparelho, não o elemento – espero), de gelo recém-tirado do congelador, do plástico que encapava fita cassete, da pasta que os dentistas usam pra fazer molde, you name it. Acho lindinha essa variedade humana, pronta a colar o olfativo no afetivo com sua poesia biográfica única, intransferibilíssima – embora eu não imagine lembrança, entre o céu e a terra, capaz de redimir a creolina –, e não pude deixar de autoinstaurar inquérito. De qual cheiro estranho vocês gostam, neuroninhos meus? O que os comove a ponto de abraçar aromaticamente o que não foi convocado para ser perfume?

Um desperfume do meu Boticário amoroso: vela apagada há segundos. Não sei se é porque vela apagada está grudada em gosto de bolo de aniversário, em cerimônia de Semana Santa ou Natal, mas aquela essência de chama defunta bota o coração quentinho. Outro frasco: prova de concurso. Detesto fazer prova, como quase todos os mortais, porém não tenho memórias ruins do vestibular – fiz de boa –, e o perfume característico do papel ou da impressão ajudou muito a gerar tranquilice; de alguma forma, todas as avaliações oficiais nos embebedam com perfume igualzinho (e olha que nem de leve estou me referindo às velhas folhas alcoolizadas de mimeógrafo, primeiro vício de várias gerações). Outro frasco: jeans e malhas ainda não estreados. E Melissas novinhas, fragrantizadas de chiclete. E detergente para bolhas de sabão. E um nosso móvel laqueado da sala, que ainda exala fooooorte quando abrimos. E as páginas duma coleção livro + LP de compositores eruditos que mora na casa dos pais. E as páginas da revista A recreativa. E as páginas de quase qualquer outra revista. Ou jornal. Ou livro. Basicamente, páginas.

Tem os aromas que não sabíamos lá, não sabíamos antes, e muito terça-feiramente nos atravessam assim no susto, nos engancham um elo perdido. Dia desses, foi sal – a caixinha do sal, onde o guardo há anos sem que jamais um fantasma olfativo tenha sido invocado; pois abri a caixa numa hora randômica e, não mais que de repente, aquele cheiro de fumaça iodada virou um cheiro de ar-condicionado de Orlando, um cheiro-Disney reconstituído por um segundo. Às vezes é coletiva a impressão, de tão forte que a lembrança se entranha sem a termos percebido: aconteceu simultaneamente comigo e com o Fábio, ao entrarmos no elevador de um prédio de consultórios e recebermos uma lufada do ar – que, brevíssima, acordou em ambos também um cheiro-Disney, idêntico ao das filas de atrações. É experiência muito imediata e muito excêntrica, só sabida por quem se acha flechado de improviso no centro do afeto, se entreolha e ri, tendo certeza de que não delirou tão conjuntamente e tão rápido. Toquem aqui, madeleines de Proust, suas lindas.

Evidentemente estou labutando para fugir à listagem clássica dos desperfumes – café, pão, chuva, mato, gasolina, pizza, pipoca –, porém declaro incluídas aqui essas (quase) unanimidades, de maneira tácita. Como clichês nasais, clóvis bornays da desperfumaria, não entram na conta do estranho, e nem sei como já não foram enfrascados (na verdade, alguns foram). Estranho é listar cheiro de contact, fumacê, vitrola, sacola, açúcar, museu, elevador de hotel, nota fiscal, fim de tarde – e mais imperdoavelmente estranho é não acrescentar aquelas nossas pessoas feitas para guardar num potinho.

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