sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Efeito Leidenfrost


Hoje se completam 305 aninhos de um alemão que eu até há pouquito não conhecia, mas que já considero pacas pela descrição de um fenômeno fofíssimo. O introvertido Johann Gottlob Leidenfrost percebeu e relatou que: quando uma gotinha é jogada sobre uma superfície quente, mas de um quente próximo a seu ponto de ebulição, ela faz aquele tssss!, ferve e some; isso mais ou menos sabemos (ou intuímos). Só que – vejam que legal –, se a temperatura da superfície for muuuuito maior que o ponto de ebulição do líquido, a gotita não vai evaporar feito doida; na verdade, ficará deslizando lindamente sobre uma caminha de vapor (NHOM!). Pelo que entendi, um bocadinho do líquido evapora e forma essa fina camada em que o restante da gota permanece "flutuando", como se em sua micronuvem particular. A ebulição não é rapidíssima porque o vapor não conduz o calor com eficiência bastante para o líquido que nele passeia. Não sei vocês, mas eu fiquei totalmente devastada de fofura ao imaginar um pinguito – de ares soberanos – dando uma volta com seu hoverboard num hot resort. 

Além da fofura, amei a filosofia e a metáfora da coisa (metáforas: trabalhamos com). Uma infinidade de vezes, vivemos também esse aparente paradoxo apontado pelo cientista, essa quase maluquice do Efeito Leidenfrost: quando o tormento ainda se encaixa em nosso universo com alguma razoabilidade, quando é forte porém compreensível, destrinchável, abordável com qualquer recurso – então conseguimos reagir assim que ele nos toca; então conseguimos receber e perceber o impacto como algo real, que nos diz respeito e nos cobra posição. Mas quando os fatos nos atropelam em temperatura irrazoável, doidos demais, febris demais, surreais demais, uma partezinha nossa parece desligar-se de nós em mecanismo de defesa, e sobre essa película de anestesia é que somos capazes de pairar ainda respirantes, até supostamente imperturbáveis. Não é que não sejamos perturbados, ao contrário: somos tão duramente afetados à primeira vista que a própria perplexidade vira almofada, torna-se a cortina (ou colchão) de fumaça que ameniza o espatifamento da psiquê – não impede a ferida, mas impede a plena consciência do abismo. 

É piração, eu sei, porém não pude evitar a comparação do Efeito Leidenfrost com a lógica protetora do TDI, o Transtorno Dissociativo de Identidade; aqui, em oposição à história da gotinha que ganha um "escudo de nuvem" contra o calor destruidor, não há fofura nenhuma, embora não se possa deixar de ver alguma beleza triste e terrível no ato de o cérebro inventar eus secundários e terciários a fim de algodoar a integridade do eu principal (sim, é o que chamavam outrorinha de "dupla personalidade" – termo pouquíssimo abrangente, mesmo porque a personalidade não precisa ser dupla: pode perfeitamente desdobrar-se em dezenas, com nomes, idades, gêneros, orientações sexuais, gostos, profissões, biografias incrivelmente diferentes). TDI genuíno é coisa rara; dá-se em casos muito, muito, muito específicos em que um trauma, porque doloroso em excesso, faz a vítima inconscientemente dilacerar-se por dentro. É sua tocante estratégia mental para metabolizar o imetabolizável, conviver com o inconvivível – uma angustiante poesia do luto. Acho fascinante (quem não?) e desolador, assim como horrivelmente desolador cada um de vários mecanismos outros a que a mente se vê obrigada pela ofensiva alheia: o coraçãozito aterrorizado de pisar fora do armário, a pele que não se abraça como negra para não ter de reconhecer sobre si os efeitos do racismo, os seios e úteros que não se engajam na luta feminina e reforçam o lado do agressor, os braços e pernas dotados de habilidades lindas e temerosos demais para desenvolvê-las, porque não é o que a família espera, o que meus pais vão pensar. Ainda que não levadas à dissociação clínica e extrema do TDI, milhares, milhões de gotas dos nossos arredores trafegam por aí escudando-se da realidade atrás de facetas suas, negando-se a pôr os pés no chão enquanto se blindam de suas películas. Fogem a certas dores imediatas, é vero; em algum momento inevitável, no entanto, esbarrarão com as mesmas ameaças e os mesmos calores, e por fim inexistirão – passando pela dor adicional de não se terem cumprido.

Cumprir-se envolve, também, saber que a chapa sempre estará quente.

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