sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Os labirintos impermanentes


É receita da bela e absoluta Cecília: "Construirás os labirintos impermanentes/ que sucessivamente habitarás.// Todos os dias estarás refazendo o teu desenho./ Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida./ E nem para o teu sepulcro terás a medida certa". 

Os labirintos impermanentes. Acordando, soltamos devagar a pontinha do novelo; uma sinapsinha amanhece aqui, outrali, e enfim vão todas nos ensolarando, cada uma em seu fuso horário delicadíssimo, apenas/ raia sanguínea e fresca a madrugada. O café, o chá preto ou o que quer que seja de energizador e quente acaba de descolar nossas linhas de ação que acordam tontas, grudadas; e daí em diante é um desafio sem fim, por motivos de: achamos estar finalmente despertos para o expediente remunerado, para o serviço fundamental, e na pressa de avaliação impercebemos que as horas pagas são somente a casa, a casca e o pretexto das horas realmente fundamentais. Moramos sob o telhado de nossos labirintos mais sólidos, porém só vivemos porque, dentro deles, pulsam nossos labirintos impermanentes.

Os labirintos impermanentes são bordados de matéria excessivamente sutil, a saber: uns filamentos de relação que começam finos, finos, finos e vão encorpando conforme os bons-dias, as cumplicidades e finalmente os declarados afetos; uns germes de reputação que vão brotando segundo a constância do adubo, e ganhando massa até o ponto de sua raiz já ter virado rede; umas fibrazinhas de algodão-doce liberadas nos gestos, que nem a pétala roçada libera perfume – o ato de fazer cafuné, por exemplo, gera quilômetros de doçura desenhados com os dedos, milhagem de teia apta a dar inveja em qualquer Homem-Aranha profissa. Se abraçamos um rosto com a mão, se botamos o sorriso indiscutível apesar da máscara, se defendemos voto antifascista, se labutamos por igualdade a cada conversa, se distribuímos exemplos maciços à criançada que está sempre olhando, se não paramos nunca de levar o meio ambiente em conta, se pausamos sempre o obrigatório em prol do amoroso, lá estamos: procedendo ao crochê dos labirintos impermanentes, como dédalos que montam sua engenharia nas entrelinhas. 

Sendo dédalos, entretanto, podemos ser também penélopes involuntárias, já que esses labirintos essenciais se configuram im-per-ma-nen-tes. Uma distraçãozinha brusca, uma palavrinha que escapa avinagrada, um vacilozinho nas percepções políticas e pronto: parte do tecido se desmancha, um só fio puxado fragmenta uma meada. É justo? – vá que não seja; mas nos serve bem de aviso para irmos reforçando uma, duas, três vezes cada trecho construído, amarrando forte, enlaçando forte, consistente, sob eterna vigilância. É o mais morredouro que nos exige mais vivos. É o mais imaterial que nos requer mais sólidos.

Que afinal, in the end, só esses imponderáveis d'alma nos ficam em permanência e em herança; são os únicos bens com leveza suficiente para que nossa leveza última os possa carregar.

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