sexta-feira, 13 de novembro de 2020

A água implícita


Nem é tão raro que estejamos rarefeitos, de impulsos rareados, inspirações ralas. Uma montoeira de fatores nos faz assim incertos: o sono não se ajeita, estímulos do dia não empurram, nada de não excessivamente duro e sólido acontece, nada que nos torne as ideias mais moldáveis, mais flutuantes. Às vezes é isso, somos essas massas pasmadas, improdutivas, olhando a tela com alguma perplexidade indiferente, sem ânimo nenhum de comentar o Brasil, o mundo, as gentes, as insânias que prosseguem à revelia de nosso imenso cansaço; por mais que muitos quartos de água nos componham, no organismo e no planeta, ocorre sempre e sempre que nos vejamos tomados de aridez – desérticos no ritmo e no conteúdo.

Felizmente existe a poesia de carro-pipa, existe a poesia como trazedora de umidade mesmo em doses fortuitazinhas; que diriam umas gotículas de Drummond, por exemplo, para nos reprovar essa paralisia de pedras no meio do caminho? Diriam fatalmente que tivéssemos a decência de "amar a nossa falta mesma de amor,/ e na secura nossa amar a água implícita,/ e o beijo tácito, e a sede infinita". Diriam qualquer algo assim, e ouviríamos; e nos poríamos a louvar, fortunosamente, também todo esse fértil estado de vazio, o silêncio que lembra ausência de vida mas é a vida itself aguardando ingerminada – pré-germinada – o despencar das nuvens inevitáveis. Ouviríamos e celebraríamos, senão a saciedade, ao menos a sede: a sede d'alma que é véspera feliz da absorção.

Há que se festejar a água implícita. As leituras que estão em stand-by, próximas de serem fundamentalmente amadas; os episódios de série que estão a postos para machadarem em nosso chão uma fonte irreconhecível; as curiosidades que moram à paisana na esquina, stalkeando meios de nos seduzir a vontade (e à vontade); os esbarrões – virtuais inclusive – que por enquanto inaconteceram, porém residem naquela bela faixa do arrebatamento provável; as falas, os ditos, os trechos, os fatos, os sustos vistos e ouvidos que andam acampados em algum espectro de futuro, sentados num banco de reservas no tempo, a um isto aqui de entrar em campo e nos bagunçar a bola. Há que se festejar a festa em preparo: o que os olhos ainda beberão, o que as ideias ainda vestirão, o que a esperança tinhosa ainda calçará, o que as pulsações ainda dançarão, o que a gula ainda provará, ruminará, assimilará. Há que se festejar o contínuo, o processo, a maré; o acordo firmado para a entrega de surpresas esparsas; o trato latente para a confiança nas ondas; o subentendido pacto de fé no que mais cedo ou mais tarde nos farta, nos dessedenta, nos estanca. 

Nossa água implícita sempre ainda virá na folha branca.

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