quarta-feira, 11 de novembro de 2020

(Também) é preciso


É preciso encarar inclusive os filmes mais difíceis, mais excruciantes na proposta e no tema, a fim de abrandar a ânsia pelo muito intenso e espicaçar a sensibilidade pelo morno, amaciar os sentidos enervados e aguilhoar os preguiçosos, moderar umas febres de estímulo e mo(v)er uns cansaços estéticos. 

É preciso fazer respiração meditativa para aveludar as sinapses.

É preciso desistir gloriosamente de entender o beisebol, as exceções do hífen e as eleições americanas.

É preciso adotar (também) pessoas que já são nossas: eventualmente pegar suas dores no colo como às próprias, sondar-lhes o interesse com interesse docinho, adivinhar-lhes uns quereres com o propósito da melhor surpresa.

É preciso pôr a consciência para amamentar ideias que o subconsciente dá à luz.

É preciso reler textos que aos 18 anos exalavam absurdo, aos 29 refluxogramizaram-se na cabeça, aos 40 ninguém imagina o quão nítidos podem acordar.

É preciso salvar as roupas que já foram centrifugadas e estão lá engrunhando na máquina – corre!

É preciso assistir a O gambito da rainha (não, ainda não vi, mas sei que).

É preciso descobrir maneira de desenferrujar o espelho (não, não estou cometendo metáfora).

É preciso assumir que músicas inconvidadas ficarão tocando nalgum sótão do cérebro, e ter músicas de higiene para proceder à desinfecção.

É preciso persuadir todas as carências da casa a se desentocarem, para que os olhos possam facinhamente recenseá-las: falta café, falta vitamina C, falta pilha grande, falta papel, falta pera, falta palito.

É preciso ouvir pessoas falando outras línguas maternas, outros sotaques, outras cadências, outros compassos, outros fonemas.

É preciso fazer campanha e novena para o Boulos realmente virar em São Paulo.

É preciso tirar as coisas para assear a prateleira sem que, ao ser novamente aterrissadas, estejam nem a um liechtenstein de distância da sua antiga posição de harmonia cósmica.

É preciso, podendo, comer um minipomar por dia.

É preciso legar aos amigos alguma memória excêntrica: ter sido aquele que criava 127 suculentas, que colecionava balanças, que acordava com bom humor insuportável, que diariamente atualizava uma página da Wikipédia, que era fã de satélites, que curtia ler manual, que só assistia a seriados holandeses, que distribuía raquetes de mosquito como presente-assinatura.

É preciso GRANDEMENTE ter sido.

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