domingo, 22 de novembro de 2020

Palavras que se recusam aos muros


Segundo os versos do português Alexandre O'Neill, "há palavras que nos beijam" – "palavras que se recusam/ aos muros do teu desgosto". Acho absolutamente lindo isso de algumas palavras apenas se recusarem a nosso desgosto, permanecerem imunes a quaisquer tentativas nossas de maus humores, feito menininhas que vão para o pátio brincar com os ganhos de Natal e querem zeromente saber de Dow Jones e Mourões. Outras palavras moças e adultas, irmãs dessas menininhas, já estão em casa e no trabalho metabolizando os desgostos; leem sobre a barbárie, sofrem com a barbárie, lutam contra a barbárie e – no intervalo entre dois sangues, duas lágrimas – suspiram olhando pela janela, recompõem seu fôlego de existir projetando-se nas irmãzitas que pulam corda. É essencial haver a alegria doida dessas garotinhas; sem um nicho sequer de carnaval ao longo de nossas trincheiras, sem uma escotilha sequer para arejar o peito e a linguagem, simplesmente mofamos de dor. São as palavras que brincam no quintal no matter what (tontas, invulneráveis, rebeldes) as responsáveis por ainda termos chance de verbalização após a edição diária do apocalipse. 

O adjetivo estimulante, por exemplo: me dá sempre uma coisa boa de cafeína fresca, uma celebração do possível, uma festa da oportunidade, uma abertura de porta para o cenário verdinho do "vamos?". Da mesma forma, algo colorido soa imediatamente chamante, vivo, acessível, avesso ao ar de sépia dos escritórios. Nos escritórios não costuma morar a pausa, esse termo de vidros escancarados e vento correndo, transparente, flutuante, beijado de mar; nem nos escritórios mora o maciíssimo e sussurrante sossego, ao contrário, fala-se muito e alto, cobra-se alto e forte. Falta o mínimo de doçura (amo!) aos tudos e ondes que exaltam o metódico e o produtivo.

Assim como a doçura, amo a ternura, essa fofurice vocabular de ares já adultos, esse fragmento de serenidade amorosa. A ternura é guriazinha menos saltitante, mais crescida, magrinha, de olhões meiguíssimos e expressão de quem alimenta, veste e põe para dormir os irmãos pequenos, como a Carlota do Werther. Nenhuma dúvida de que a ternura quer adotar os bichitos todos do universo e passear com eles no colo, mesmo que búfalos ou elefantes, enquanto entrelaça os cabelos de flor – outra dessas lindezas na forma e no conteúdo, tão feita de aconchego e alento quanto varanda, lírico, adorável, frescor, luz, águas, clepsidra, claraboia, arco-íris, mágica, música, inocência, mel, café, romântico, buganvília. Evidentemente há termos assim revigorantes às dúzias, aos trilhardares, porém não basta (ao menos a mim não basta) que o significado pulule força para que seja antídoto contra o desgosto; tanto é que entusiasmo, digamos, não me traz nada semelhante a seu nome – me parece antes um senhor sério e ligeiramente tuberculoso do que uma palavra-menina. Nem gratidão, empatia, unicórnio, saudade ou resiliência tampouco me emocionam, por mais que suas definições sejam um espetáculo: seus corpinhos de letras me aparecem como aqueles atores diariamente focados pela mídia, até o ponto do tédio e da indiferença. Sou estranha, já me declarei firma-reconhecidamente estranha, e enjoo fácil até de cor de esponja; preciso ver profusões diferentíssimas de fonemas no jardim.

Senão (para olhos e ouvidos) ficam muro e spleen.

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