terça-feira, 3 de novembro de 2020

Mais que vidro


Ontem comentei sobre o fato de não nos percebermos vidro; hoje, por coincidência (juro: foi coincidência), fiquei sabendo de um desses distúrbios psicológicos estranhíssimos em que as pessoas passam a acreditar que SÃO feitas de vidro – sem metáfora. Diz-se que os primeiros registros foram na Idade Média: o rei francês Carlos VI, por exemplo, morria de medo de se estilhaçar caso alguém o tocasse, e se acolchoava enrolando-se em cobertores (mega te entendo, Carlos, a respeito do desejo de viver enrolado em cobertores; evitemos exagerices, porém). Lá pro século XIX, a frequência dos casos deu uma caída – talvez porque, segundo uma teoria, o vidro já estivesse "normalizado" na sociedade, e aquela percepção aflita que se costuma ter de avanços tecnológicos praticamente não o envolvesse mais. Mas passar, passou não, tanto que o psiquiatra Andy Lameijn pesquisou e identificou ocorrências dessa neura nos anos 30 e 60 do século passado, até ele mesmo acabar testemunhando um caso recente: o rapaz em questão tinha sofrido um acidente pouco antes, e a família do moço se tornara superprotetora; assim, de acordo com Lameijn, o delírio de ser vítreo serviu ao paciente como uma espécie de fuga pela transparência, já que ele imaginava ter ganhado o poder de sumir e reaparecer conforme quisesse. "Virar" vidro, ao que tudo indica, devolvia um pouco de privacidade ao jovem que andava de saco cheio dos excessivos cuidados.

Fico de queixo realmente desabado com a criatividade do cérebro em termos de elaboração da realidade e autodefesa. Enquanto a provável maioria (de que falava o texto anterior) tende a lidar com a caçambada de demandas metendo carteirada de Homem de Aço ou Wolverine, fingindo demência com relação aos próprios limites e à própria finitude, tem esse povo cuja estratégia é contraríssima e não menos esdrúxula: hiperbolizar a finitude e os limites até o extremo do extremo. Uma gente em que a insegurança, a inaptidão social, o pavor de qualquer ação ou atitude possivelmente doem tanto, tanto a ponto de seu centro de controle vestir a paralisia do medo com um álibi físico; um corpo que se enxerga estilhaçável à mais levinha proximidade, afinal, está automaticamente se redomando também de tudo que traga pressão psicológica debaixo do braço – nada de trabalho, nada de filhos, nada de amores. Que pode uma estrutura tão quebradiça senão ficar apenas respirando e existindo na cristaleira, justificada para si mesma, sob atestado médico autoassinado e rigorosíssima receita de "proibido viver"? Embora a alucinação específica dessa síndrome (de que não sei o nome, infelizmente) seja bastante rara, quase todos conhecemos pelo menos algum caso leve ou moderado de congelamento, de travamento, de perplexidade total diante deste mundo barafundo – e posso lamentar, mas de modo algum julgar uma tamanha pane no sistema; sinceramente, até me admira não haver, no atual caos de estímulos, uma quantidade de pacientes bem mais significativa. Duvideodó qualquer ser da Idade Média resistir por duas horas ao nosso ritmo multitaskeador e decisivamente aloprado.

O que mais me comoveu no distúrbio misterioso, porém, foi a variante que se manifestou no paciente acompanhado por Andy Lameijn; nessa exatinha situação, o portador parecia não querer se defender precisamente do seu medo, e sim do medo alheio. Não tenho maiores informações a não ser as da matéria linkada, mas os poucos elementos havidos sugerem que o jovem Mr. Glass injetou uma quase insolência em seu transtorno: ah, vão me tratar como cristalzinho? tratem; só que cristal também fica invisível, peguei vocês!! Espero carinhosamente que sim, que haja muito dessa insolência no cérebro do analisado de Lameijn, que haja lotsa dessa rebeldia que se recusa ao mimo e à estufa mesmo que inconscientemente; espero ele tenha conseguido romper o domo de vidro com suas desaforadas asas de vidro, tenha feito valer sua voz e visibilidade com sua capa de invisibilidade. Se romantizo a situação, se os dados científicos (que não possuo) apontam outro caminho, a medicina me perdoe – mas fique claro que não é exame, é torcida: torcida pela superioridade da teimosia humana sobre todo e qualquer tipo de morte.

Torcida para que o diagnóstico do doutor Drummond se aplique, e as reações do moço transparente sejam só mais um caso de poesia.

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