segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Saquinhos de ar


Hoje tem boniteza de celebração: é o Dia Internacional da Tolerância. Sou nem doida de questionar o quanto é urgente, o quanto é fundamental esgoelar a coisa aos quatro ventos – já que, à medida que cresce a conscientização sobre o abraço universal, algumas almas infelizes também se desvergonham e desgovernam, surtando preconceitos feito baratas cutucadas na toca. Não há a menor condição de NÃO haver constantes lembretes, convites, alertas, odes, brindes, chamadas à tolerância, critério indiscutível e sagrado para sermos aprovados em Humanidade; não há a menor condição de não falarmos dela, não a louvarmos, não a defendermos em todos os tons e timbres, em todas as (plata)formas e mídias, em todos os grupos e ocasiões. É essencial citarmos tolerância, gritarmos tolerância, tecla-batermos tolerância até que se calem em definitivo os intolerantes (únicos realmente intoleráveis). Certo; isso não está em discussão. É questão domesticada. Terra pacificada.

Não consigo evitar, porém, meu impacificado incômodo com o termo "tolerância".

Concordo seja difícil arrumar substituto, mas é fato: em determinadas situações, a palavra me desconforta. Afinal, toleramos coisas feitas, em tese; coisas-atitudes, coisas que nos são – ou são quase, ou praticamente são – dirigidas, que nos causam efeito prático com ou sem propósito. Toleramos (no devido horário) a festa do vizinho, o videogame online do vizinho, a conversa aos gargalhos do vizinho, os trocadilhos vintage do colega, a ligação chorosa da amiga na madrugada, a criancinha fofa do cliente desarrumando a loja, as 43.768 especificações da mãe para uma escolha bem-sucedida de frutas no mercado, o inquérito da tia-avó sobre os namoradinhos, o meeeeeesmo trecho de ópera durante o loooooongo banho do irmão. Toleramos hábitos, chatices, rabugices, manias, perguntas – toleramos em geral ninharias que nos aborrecem no outro, e que nos aborrecem por efetivamente nos invadirem o espaço sonoro, o tempo de trabalho, o tempo de sossego, o que for, mas representarem uma pequena invasão real/oficial. Toleramos o que, de alguma maneira, é da nossa conta.

O ser muito particular e intrínseco do outro já não é da nossa conta. Aquilo que é constitutivo da vida e da identidade do outro, dele apenas e no máximo extensivo a seu parceiro amoroso, já não é da nossa conta. Não nos diz respeito, não tem de bater ponto em nossa opinião, não precisa de nossa autorização mais do que precisa de uma lixa quebrada. Se a pele do outro é desta ou daquela cor, se o cabelo do outro assume maior ou menor volume, se na vivência de sua fé o outro come isso ou jejua daquilo, se o outro beija homens ou mulheres ou ambos (ou nenhuns), se se enxerga como homem ou mulher ou nenhum (ou ambos, ou outro), se traz no sotaque a música de regiões aléns ou aquéns – nada, absolutamente nada disso sequer tange a necessidade de nossa aceitação ou consentimento, nem de levinho roça o perímetro em que nossa participação seria conveniente ou requerida. Essa consciência é que me faz, num cantinho do peito, achar arrogante o conceito de tolerância aplicado ao que nunca deveria se dar ao trabalho de pedir para ser tolerado. Who the hell somos nós para "conceder" a honra do óbvio? Que espécie de autoridade nos atribuímos para julgar relevante nossa condescendência – para fazer parecer que estamos suspirando fundo e "concordando", generosamente, com a existência de algo perfeitamente alheio a nós?

Apoquenta-me (não adianta) esse aspecto semântico da tolerância que aponta para um "olha, estou aqui aturando seu estilo de vida no qual não entro, estou aqui suportando com bravura a visão de um alargador que NÃO está na minha orelha e de uma tatuagem que NÃO me doeu na pele, estou aqui autorizando com sacrifício o gesto de carinho entre um casal de transeuntes, estou aqui me resignando em silêncio à sua quantidade de melanina, veja que ser evoluído e fabuloso eu sou". Como se um desconhecido, sei lá, chegasse para mim na rua e me outorgasse o direito de andar nela. Como se qualquer de nós se pusesse na esquina a distribuir saquinhos de ar. Sim, assim absurdo – e ainda assim, muitíssimo infelizmente, continuamos necessitando de um dia para celebrar o ululante; aquilo que, não existindo, desanda simplesmente em barbárie. O que me faz compreender com inteireza por que a respiração, a pulsação e as demais atividades-eixo de nosso organismo são involuntárias: a depender da disponibilidade natural dos sapiens para viver o que nos mantém vivos, já estaria toda a espécie enterradíssima.

Nosso drama capital, entre os mil outros, é não termos crescido bastante para nos recolher à nossa insignificância.

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