terça-feira, 10 de novembro de 2020

O reverso da fortuna


Devo pegar de empréstimo a máxima do genial Friedrich Von Schiller, aniversariante do dia com módicos 261 aninhos: "A vida é o único bem que os maus possuem". Dez palavras e um completo tratado psicossocial, um discurso inteiro de reconfortante tristeza ou de sereno desconsolo. Protestarão muitos que não, indignadamente não!; como pode ser a vida o único bem dos maus, se uma coleção tão enorme de maus amealhou, no decorrer de suas maldades, grana suficiente para comprar a Ásia e usar de garagem a Oceania? Diamantes com o diâmetro da Rodrigo de Freitas, Ferraris, iates, ilhas de trabalho, ilhas de férias, closets de três andares alimentados a Chanel e Gucci, cinemas e boates que são mais um comodozinho da casa e de vez em quando dão pinta no Espaços milionários – tudo isso não são bens guardados e exibidos por muita pessoa nefasta, muita gente que simplesmente NÃO PODE ser tão inconcebivelmente rica sem arrastar uma linha pontilhada de doença e miséria? Fora os maus que não se tornam trilhardários: não têm posses normais, família, trabalho, lembranças creepymente caras das maldades que fizeram?

Eles têm, mas não creio que tenham. No caso dos Patinhas mergulhados em cofres nababescos, por sinal, o mais provável é que sejam tidos: seus bens não são necessariamente seu bem, ao contrário, já é quase regra que todas as pompas se mostrem em algum momento Hidras insustentáveis, vorazes, devoradoras; o luxo leiloa sua presença sem, entretanto, aturar desaforo, e só é leal pelo tempo em que caninamente lhe pagam limpeza, manutenção, parcelas, juros, tudo bastante bonitinho. Em ruindo a fonte, nem ele nem seus derivados ficam para dar cafuné e tapinha no ombro, mudam de dono num assinar de cheque, num fechar de porta, lépidos e lampeiros. Fora os custos de incerteza e paranoia que gelam as artérias enquanto Seu Lobo não vem: ninguém pode descobrir, ninguém pode ver, ninguém pode saber – praticamente uma versão magnata das primeiras estrofes de "Let it go" (com a diferença de que FBI, CIA, Polícia Federal e sei lá mais quens não são o frio, e VÃO mesmo incomodar). É vida? a despeito dos aparatos, prazeres, ostentações: é vida? passar décadas olhando por cima do ombro, não sabendo de qual lado, de qual brecha, de qual Brutus vem a facada? Aleguem o que alegarem, vida é que não é, e no apagar das luzes (da mansão) talvez nem ela própria resista à longa penhora moral. Pessoalmente, declino.

Com relação à malvadolândia que jamais terá perdas milionárias porque jamais terá alcançado a posse, o despenhadeiro nem por isso é menor. Mesmo nos casos de psicopatia, em que não há medo ou remorso, existem baldes de inquietação, dissimulação, perturbação azedando a rotina; fugir e fingir em expediente integral é processo que não autoriza nenhuma espécie de paz, e qualquer dopamina obtida na prática da ruindade não dura – nunca dura. Para os nativos ou residentes da malvadeza, é dificílimo restar pedra sobre pedra, escapar o que quer que seja de imperecível: a família fatalmente se esgarça no desamor e na secura, parcerias e amizades se esvaem ao perceber-se vampirizadas, fanatismos de morte se autodestroem ou são coletivamente destruídos, trabalhos acabam por tornar-se inviáveis, nada vive, nada permanece. Nada se edifica ao redor da crueldade que seja sólido o bastante para protegê-la de si mesma. E, como o cérebro gerido pelo cruel tende a não crer (a não ser como máscara social favorita) em nenhum sistema de amor universal, naturalmente não conta com braços nos quais se atirar para além desta vida – que, em análise final, acaba de fato sendo seu penhor exclusivo, seu resíduo de capital, ainda assim amargamente entendido como matéria oca.

Não existe solidão tão tamanha quanto a dos maus, que enquanto vivos perambulam como cascas, e, mortos, não deixam lembrança melhor que seus túmulos na memória dos vivos.

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